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Pacientes com doenças raras lutam para conseguir remédios no SUS

Em uma corrida para impedir o avanço das enfermidades, famílias enfrentam burocracia estatal e ações na Justiça em busca de tratamento

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Gustavo Moreno/Especial Metrópoles
O Enzo de Assunção Alves, tem uma doença que se chama AME (atrofia muscular espinhal). Os pais dele: Joziele Santana Alves e Thiago de assunção Moura
1 de 1 O Enzo de Assunção Alves, tem uma doença que se chama AME (atrofia muscular espinhal). Os pais dele: Joziele Santana Alves e Thiago de assunção Moura - Foto: Gustavo Moreno/Especial Metrópoles

Em outubro de 2019, aos 3 anos, Francisco Marinho teve uma convulsão. Joline Costa e Bruno Araújo, os pais do menino, são de Breves, uma cidade de 100 mil habitantes na Ilha de Marajó, no Pará. A família procurou um médico, a criança passou por uma bateria de exames e foi diagnosticada com epilepsia.

Com o uso de medicamentos, o quadro foi controlado – até maio do ano seguinte, em plena pandemia, quando Francisco voltou a ter convulsões e começou a apresentar dificuldades para falar e executar movimentos simples. Depois de um exame genético, em agosto de 2020, veio o diagnóstico: o menino tem a doença de Batten.

A condição é uma das mais raras do mundo, e acomete uma a cada 200 mil pessoas. É uma doença genética, caracterizada por sintomas neurodegenerativos, como deterioração da visão e declínio das capacidades mentais e motoras. A doença de Batten não tem cura. No horizonte dos pacientes, há apenas a possibilidade de retardar a evolução do quadro.

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“A neuropediatra começou a chorar. Ela falava que estudou isso na faculdade, e achava que nunca iria ver um caso. Foi desesperador. Tudo o que eu encontrava na internet falava em cegueira, em morte. E só existe um tratamento eficaz, um medicamento de alto custo”, conta Bruno, o pai do menino.

Uma dose do remédio, que deve ser aplicado duas vezes por mês e é de uso contínuo,  custa R$ 200 mil. Francisco terá de tomá-lo pelo resto da vida. Para Bruno e Joline, um casal de professores, o preço é impagável.

O tempo como complicador

O medicamento que a criança precisa já foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para comercialização no Brasil e, atualmente, está na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS, a Conitec. O órgão colegiado, ligado ao Ministério da Saúde, decide quais remédios e tratamentos serão custeados pelo Estado, com dinheiro público.

Em uma primeira avaliação da Conitec, o medicamento para a doença de Batten recebeu parecer desfavorável por seu alto preço, e agora o assunto vai a consulta pública.

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A doença de Batten é fatal, sendo comum que as crianças diagnosticadas não completem a primeira década de vida. Para evitar esse destino ao filho, os pais de Francisco entraram com duas ações paralelas na Justiça pedindo que o medicamento fosse fornecido pelo SUS ou pelo plano de saúde da família.

“Tivemos negativas da Justiça em primeira e segunda instância. Foi muito difícil ver meu filho piorar. Ele já andava sozinho, sabe? Nesse tempo, ele regrediu, não conseguia mais andar, ficar de pé, não falava, não tinha controle do tronco e da cervical, só se alimentava por sonda. Quanto mais a doença avançava, mais a gente se desesperava”, lembra Bruno.

Apesar de a Conitec ter um prazo de 180 dias (prorrogáveis por mais 90) para analisar a incorporação de um medicamento, um levantamento da farmacêutica Pfizer mostra que, entre avaliação, recomendação e decisão do Ministério da Saúde, o caminho demora, em média, oito meses.

Depois que o medicamento é aprovado, o governo federal tem mais 180 dias para negociar o preço com o fabricante e organizar a logística para disponibilizar o remédio nas farmácias de alto custo. Ainda de acordo com o mesmo estudo, essa etapa, na prática, costuma demorar mais 365 dias.

Todos os medicamentos e as tecnologias a serem incorporados no SUS passam pelo mesmo processo – porém, para pacientes como Francisco, cada minuto de espera é crucial, já que a doença continua avançando.

Os critérios de avaliação da Conitec são os efeitos do medicamento, os benefícios que ele oferece ao paciente, se é superior ao que o SUS já oferece e o impacto financeiro do tratamento para o sistema como um todo. O grupo de conselheiros se reúne por dois dias a cada mês, e analisa de 10 a 15 pautas por encontro.

Pacientes e associações médicas sem voz

Uma das principais críticas das associações de pacientes à Conitec é a falta de participação dos interessados nas decisões. O paciente tem pouco espaço para opinar no processo de incorporação de tratamentos. O único momento no qual ele é ouvido ocorre durante a consulta pública.

“As pessoas passaram a desacreditar as consultas públicas. Na primeira que agilizamos, tivemos 70 mil participações. Na última, só 500″, conta Renato Trevellin, presidente do Instituto de Luta contra AME Gianlucca Trevellin.

Pai de uma criança de 9 anos com AME, Trevellin batalha para que o SUS ofereça um remédio para a Atrofia Muscular Espinhal chamado Spinraza. O medicamento custa cerca de R$ 1,8 milhão no primeiro ano e, depois disso, precisa ser aplicado a cada quatro meses (cada dose custa R$ 145 mil) para o resto da vida.

O Spinraza já está incorporado ao SUS, mas apenas parcialmente. Os pacientes com a doença do tipo 1 têm o tratamento assegurado. Os do tipo 2, 3 e 4, ainda não. Em sua peregrinação para ampliar o acesso ao medicamento, os familiares de pessoas com AME já estiveram 21 vezes em Brasília com o objetivo de fazerem visitas ao Ministério da Saúde e a políticos.

“Informação a Conitec tem. A AME era uma doença sem tratamento há 120 anos, e agora tem três opções. Mesmo com todos os artigos científicos em mãos, eles não incorporam. Imagino que seja difícil pelo custo, mas tem uma contrapartida: o paciente fica estável, sem precisar de internação”, aponta Renato.

Joziele Alves, 28, é mãe de Enzo, 6 anos, que tem AME do tipo 2. Ao notar que o menino de 1 ano não se desenvolvia na mesma velocidade que outras crianças, ela começou a se preocupar. Só meses depois, quando ele já tinha 18 meses, conseguiu uma consulta na Rede SARAH do Distrito Federal, e recebeu o diagnóstico da doença.

Em janeiro de 2019, Joziele decidiu garantir na Justiça o medicamento para Enzo. Um ano de espera depois, ela ganhou o processo – porém, até hoje, não recebeu o remédio. A União alega que não há comprovação de eficácia, coloca restrições contra a bula, que é aprovada pela Anvisa e aceita em outros países.

“O remédio é uma gotinha de esperança. Por não ter outro tipo de tratamento, é a chance de saber que meu filho não vai ter uma progressão tão agressiva da doença, pelo menos vai manter o que ele tem hoje. É muito triste vê-lo perder a função motora, é como se as células dele morressem todos os dias”, conta a garçonete, moradora da Cidade Ocidental, em Goiás.

A médica geneticista Carolina Fischinger, que é diretora científica da associação Muitos Somos Raros, explica que, pela própria natureza das doenças raras, há poucos estudos de eficácia sobre os medicamentos. “Há também poucos dados epidemiológicos sobre os pacientes de doenças raras no Brasil, não temos dados de frequência da ocorrência e poucos estudos em âmbito nacional, algo que a Conitec valoriza bastante”, afirma.

Ela lembra ainda que a comissão analisa todos os tipos de medicamentos e tecnologias a serem incorporadas no SUS. Para que o processo de escolha se torne mais justo com os pacientes, ela sugere a formação de um painel de especialistas com o objetivo de avaliar a incorporação de novas tecnologias para o público específico das doenças raras.

Mesmo com aprovação, fornecimento não é garantido

Ainda que o medicamento seja aprovado, as famílias vivem uma angustiante espera até que ele seja, de fato, ofertado pelo Sistema Único de Saúde. Para Eduardo Calderari, o vice-presidente da Interfarma, a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa, o fator que mais atrapalha o acesso dos pacientes aos tratamentos é a dificuldade de estabelecer um preço com o Ministério da Saúde.

“O principal problema hoje é a demora. A gente observa que, mesmo com a aprovação, não se entra em acordo comercial com a fabricante. Tem processos assim há mais de um ano parados no Ministério da Saúde. Ao mesmo tempo, durante a negociação, há muita incoerência. Eles se perdem, inventam números e descontos, e o paciente fica sem produto. É um desperdício de tempo e de recursos”, afirma.

Segundo ele, a indústria farmacêutica está disposta a negociar com o governo, mas os descontos exigidos pelo poder público extrapolam a razoabilidade. “A gente muitas vezes vê relatório dizendo que se compreendem os benefícios, mas, pelo impacto orçamentário, seria necessário um desconto de 90%, o que é completamente fora da curva”, afirma.

Calderari conta que é preciso rever como as compras são feitas: hoje, cada estado faz a sua aquisição com recursos repassados pela União. Se o processo fosse centralizado pelo governo federal, o poder de compra do Ministério da Saúde garantiria negociações mais favoráveis.

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Outro problema apontado pela Interfarma é a composição do plenário da Conitec – nem a indústria nem as associações de pacientes têm assento fixo para opinar nas discussões. De acordo com Calderari, a análise do órgão apresenta apenas um viés, já que é composto basicamente por integrantes do governo.

Com assento na Conitec, a conselheira Débora Melecchi, representante do Conselho Nacional de Saúde (CNS), rebate: “Quando falamos de incorporação, é preciso olhar diferentes aspectos. Sabemos que é um grande mercado, com diversos interesses que não são apenas os do governo. Nossa base é a defesa da ciência para que se analise o melhor a atender a necessidade das pessoas, mas sem onerar o SUS”.

Para aumentar a representatividade nas decisões da comissão, Débora sugere que os pacientes busquem os conselhos municipais ou regionais de Saúde explicando suas demandas. De posse dessas informações, o CNS estaria mais preparado nas reuniões para defender o ponto de vista dos usuários do SUS com doenças raras. “As pessoas podem levar suas demandas, fazer um debate no conselho local e, conforme o assunto, é possível pautar o conselho estadual e chegar ao nacional”, sugere.

A reportagem entrou em contato com o Ministério da Saúde para questionar sobre os atrasos na análise e na negociação de medicamentos, mas foi respondida com uma nota informando apenas sobre as funções da Conitec, sem esclarecimentos para as questões levantadas.

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Judicialização se torna a única saída

As dificuldades ao longo do caminho transformam a judicialização na única alternativa para as famílias. Usando como argumento a Constituição Federal, que garante o acesso universal à saúde, elas acionaram o Poder Judiciário para que o Estado banque os medicamentos de que precisam.

Sem ter como esperar a decisão da Conitec e a incorporação do medicamento ao SUS, a família de Francisco buscou na Justiça o direito de tratar o filho. A primeira vitória, entretanto, foi na ação contra o plano de saúde. Mas, uma segunda decisão, horas depois da cirurgia para implantação do cateter que levaria o medicamento ao cérebro da criança, revogou a obrigação de o plano pagar o tratamento. Foi um desespero, mas Bruno e Joline conseguiram, por meio de um recurso, a segunda sentença.

No dia em que Francisco finalmente tomou a primeira dose do remédio, ainda no hospital, conseguiu falar algumas palavras. Menos de uma semana depois, já saía da posição deitada e se sentava sozinho. Depois da segunda dose, deu os primeiros passos. Na última semana, conseguiu, pela primeira vez, comer uma refeição sólida, sem precisar da sonda.

“São avanços maravilhosos, a melhora tem sido absurda”, conta Bruno.

O tratamento começou com a decisão desfavorável ao plano de saúde, mas a ação contra o governo federal já andou e, agora, o Poder Executivo está em processo de compra do medicamento. “Esperamos conseguir reverter a recomendação desfavorável do remédio na Conitec durante a consulta pública. A partir daí, temos laudo, indicação, imagino que o acesso se torne mais fácil”, diz o professor, antecipando, de maneira otimista, os novos capítulos da batalha.

Veja a evolução de Francisco após começar a tomar o remédio:

Webinar Perspectivas e oportunidades para a evolução do acesso público à saúde no Brasil

Data: 8 de novembro de 2021
Horário: 15h
Transmissão: Youtube e Facebook do Metrópoles

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