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Acusado de causar mortes com proxalutamida, Cadegiani defende estudo

Endocrinologista de Brasília liderou estudo que registrou 200 mortes, mas diz que taxa de mortalidade foi menor do que fora da pesquisa

atualizado

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Gustavo Moreno/Especial para o Metrópoles
Flavio Adsuara Cadegiani – endocrinologista . Brasília(DF), 09/11/2021
1 de 1 Flavio Adsuara Cadegiani – endocrinologista . Brasília(DF), 09/11/2021 - Foto: Gustavo Moreno/Especial para o Metrópoles

Endocrinologista requisitado em Brasília, o médico Flávio Cadegiani ficou conhecido nacionalmente após a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) apontar indícios de violações éticas em um estudo liderado por ele, que testou um inibidor hormonal no tratamento da Covid-19. A pesquisa com a proxalutamida envolveu 645 pacientes com Covid no Amazonas, dos quais 200 morreram, o que motivou o Ministério Público Federal (MPF) a abrir inquéritos criminais e a CPI da Pandemia no Senado a sugerir o indiciamento do profissional por crime contra a humanidade.

Enquanto revisava mais uma vez documentos que pretende usar para se defender das acusações, Cadegiani conversou com a reportagem do Metrópoles em seu consultório na capital da República, negou violações éticas, defendeu o estudo e afirmou que ainda acredita que a proxalutamida possa ser útil no tratamento da doença, mas lamentou a politização da pesquisa.

Para o médico, o fato de o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ter abraçado a defesa do remédio na mesma época em que advogava pela cloroquina como tratamento para o coronavírus foi determinante para ele ter virado alvo de investigações.

“A Conep havia aprovado nosso protocolo, mas mudou completamente de comportamento após a entrada do presidente em cena”, avalia Cadegiani, que diz não ter proximidade com Bolsonaro ou outros integrantes do governo e que nunca quis e não recebeu auxílio financeiro estatal.

Negando ser partidário de qualquer negacionismo em relação à pandemia, o médico afirmou acreditar que a vacina é a solução para a Covid-19 e que nenhum remédio deverá ser uma “bala de prata” que derrote o vírus. Defendeu, contudo, que alternativas para o tratamento continuem sendo pesquisadas.

“Eu acho que a única molécula hoje que não vale a pena estudar é a hidroxicloroquina, mas as demais moléculas ainda carecem de estudos. Até a ivermectina acho que ainda pode mostrar algum resultado, mas não sozinha. Covid é uma doença complexa, que exige mais do que a monoterapia”, afirma.

As acusações

Cadegiani alega que o número que tem sido usado como exemplo do absurdo da pesquisa com a proxalutamida é, na verdade, uma boa notícia. “Nosso estudo na Região Norte teve 645 participantes, e, naquela época, nos mesmos hospitais, nas mesmas situações, a mortalidade pela Covid estava em 50%. Então, se esperava que registrássemos 310 ou 320 mortes caso a molécula não fizesse nenhuma diferença. Mas tivemos menos, registramos 30% de mortalidade, somando as pessoas que receberam o remédio com as que receberam o placebo. E não houve nenhum paciente com comportamento fora do esperado. Então, estou tranquilo para me defender dessas acusações”, disse.

Outra acusação que pesa sobre Cadegiani é a do uso de uma dosagem excessiva da proxalutamida em um paciente, que recebeu 600 mg da molécula no primeiro dia, com doses diárias de outros 200 mg pelos sete dias seguintes. Segundo o médico, o caso ocorreu antes da pesquisa, que agora é investigada, e envolveu um paciente que chegou a seu consultório com um quadro muito grave de Covid.

O médico alega ter feito então o “uso compassivo” do remédio, o que seria autorizado pela própria Conep, em casos em que não houvesse outra alternativa terapêutica. “Ele foi informado de absolutamente todos os riscos e direitos. Inclusive, por conta da demora pra conseguir o medicamento, ele teve até um bom tempo para pensar se topava usar o remédio ou não. E a dose não é inédita. Existem pesquisas anteriores, em fases 1 e 2, que administraram a proxalutamida em pacientes com câncer de próstata nessa dosagem”, alega.

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Veja mais pontos da entrevista:

O senhor tem formação como cientista?

Sim. Eu cursei medicina aqui na UnB, fiz residência de clínica médica, depois endocrinologia clínica. Fiz mestrado e doutorado em endocrinologia clínica na Universidade Federal de São Paulo. Na minha pesquisa de mestrado, derrubei a existência de uma suposta doença chamada fadiga adrenal e tive bastante repercussão, inclusive internacional. Meu doutorado é sobre uma síndrome que afeta atletas, chama síndrome de over training. É uma síndrome na qual o atleta começa a ter perda de performance, e o resultado gerou um livro e é base para outras pesquisas no mundo inteiro.

Então, [a da proxalutamida] não foi a minha primeira pesquisa. Eu fazia pesquisas mais observacionais na área de obesidade e acompanhava alguns outros centros, então eu já tenho conhecimento na área de pesquisa há pelo menos 10 anos.

Com o aparecimento da Covid, achei que podia ajudar, porque eu vi o que estava para acontecer, vi que até que as vacinas chegassem, a gente precisava fazer alguma coisa. E estava nítido que os fatores de risco [para a Covid] estavam quase todos relacionados à minha área, desde obesidade, diabetes, até a parte de excesso de hormônios masculinos.

Existem pesquisas, desde observacionais até avaliando medicamentos, que ligavam o agravamento da Covid ao excesso de hormônios masculinos, então analisamos, e a análise culminou nas pesquisas com a proxalutamida, inicialmente nos pacientes ambulatoriais aqui em Brasília. E, pela eficácia e pela ação inesperada anti-inflamatória e antitrombótica, independentemente do uso de outros remédios, a gente levantou a hipótese que poderia funcionar em pacientes hospitalizados. Então, a gente obteve aprovação da Conep para realizar a pesquisa. Como não tínhamos hospital nem universidade, pois eu sou um pesquisador independente, eu recebi a aprovação e fui atrás dos hospitais. Como o Amazonas estava no ápice da variante P1, que é a Gama, a gente foi para lá, conseguimos uma rede parceira e começamos.

Foi uma pesquisa extremamente séria, a gente fez todos os treinamentos nas equipes. O índice de recusa [de participação pelos pacientes consultados] na primeira semana inclusive foi alto, porque a gente preferia superestimar os riscos e subestimar os benefícios. A aceitação só começou a melhorar quando os primeiros resultados positivos apareceram.

O que é a proxalutamida?

É uma molécula de uma classe de medicamentos antiandrogênicos bem fortes, que são usados principalmente para pacientes com câncer de próstata resistentes à castração. Então, você dá essas medicações com uma inibição bem forte de hormônios masculinos para ver se o câncer para de crescer ou diminui. Existem outras moléculas dessa família, e a proxalutamida é o que a gente chama de molécula de segunda geração. A primeira geração tem a bicalutamida, e segunda geração tem várias. Ocorreu de pesquisar proxalutamida porque nós recebemos uma doação [de um laboratório chinês].

O senhor afirma que a Conep mudou de comportamento após a primeira divulgação de resultados. O que aconteceu?

A gente tornou públicos os primeiros resultados por causa da relevância. O Conselho Nacional de Saúde define que, para pesquisa, quando você tem resultados de relevância pública, você tem que divulgar. Nós divulgamos com o principal objetivo de tentar forçar a expansão dos estudos. Porque eu também não posso pegar um estudo meu e falar assim: ‘Funciona, vamos usar’. Eu, mesmo como pesquisador principal, jamais iria forçar uma autorização sem ter pelo menos uma replicação do nosso estudo, que nós mesmos fizemos no Sul [hoje a Conep acusa o médico de ter replicado o estudo em um hospital militar no RS sem autorização]. O segundo objetivo era chamar a atenção para a classe de medicamentos: estudem essa classe de medicamentos, pode ser que venha a funcionar.

Essa divulgação teve um caráter completamente científico, mas o que aconteceu é que começaram a expandir para o lado político, e, à medida que ia politizando, os problemas começaram a vir. Houve uma mudança bem importante de comportamento de membros da Conep.

Eu tinha uma relação excelente com eles, que são são supertécnicos, mas houve uma mudança de comportamento a partir dessa politização.

Os resultados foram divulgados por políticos ligados a Bolsonaro, como seu filho, Eduardo, e a deputada Bia Kicis (PSL/DF), e pelo próprio presidente. Como eles acessaram esses dados?

Do Eduardo Bolsonaro e da Bia Kicis, eu não sei. Do presidente, acredito que tenha sido o então ministro Eduardo Pazuello. Ele mora em Manaus e tem contato com diretores dos hospitais onde foi feita a pesquisa, da rede Samel. Mas não sei como se deu exatamente essa questão. Eu mesmo só estive com Pazuello uma vez, e nunca vi Bolsonaro, inclusive neguei um pedido de encontro com ele, porque eu teria que traçar uma explicação técnica e talvez isso coubesse mais aos técnicos. Eu sou cientista acima de tudo, meu objetivo era salvar vidas.

Aí, a Conep, que havia autorizado o estudo, depois dessa primeira divulgação de resultados voltou atrás e começou a apontar uma série de problemas. Me enviaram as primeiras notificações em caráter de urgência menos de três dias depois da primeira fala do presidente Bolsonaro. Pediram para, em 48 horas, enviar o primeiro relatório, que, em tese, nós tínhamos seis meses para enviar.

E nós enviamos, mas eles fizeram uma audiência no início de maio que, a meu ver, foi uma inquisição. E a partir daí eu já parei de responder, já vi que o objetivo era outro. Eles abriram uma investigação a meu ver ilegal, começaram a pedir muitos documentos, e, à medida que nós íamos enviando, eles iam mudando o discurso, iam pedindo outros. Pediram documentos que eram nitidamente inéditos de terem sido solicitados pela Conep. Ficou um caráter nitidamente persecutório, querendo encontrar algum erro.

A Conep acusa o senhor de mudar o local da pesquisa sem autorização, de incluir mais pacientes do que o permitido e de apresentar, no Amazonas, um termo de autorização diferente do aprovado.

Eles aprovaram a minha pesquisa com um mínimo de 294 pacientes. E não foram 645, na realidade foram quase 780, contando com os pacientes do sul. É importante deixar claro que o sistema da Plataforma Brasil tem limitações inerentes a qualquer sistema. E eles mesmos [Conep] orientam a fazer adaptações ao sistema nas orientações. Então, no número de pacientes, a Covid não permite que a gente calcule com tanta exatidão, porque a gente calcula com base nos dados existentes, a gente estima, só que, com uma variante, vão mudando os dados de mortalidade, de letalidade, as publicações etc. A gente colocou esse número mínimo porque sabíamos que, com menos de 294, a gente jamais ia conseguir gerar um resultado de poder estatístico, mas havia a possibilidade de ampliar, não faz sentido agora colocarem que era limitado a 294.

Sobre o termo de autorização, o aprovado tinha oito páginas e mandei pro Amazonas exatamente como foi aprovado. Não sei exatamente o que aconteceu lá. [A Conep indica que uma versão de duas páginas foi dada aos pacientes]. Mas os pacientes foram devidamente orientados, tanto que houve uma recusa muito grande na primeira semana. Eu sempre fiz questão de informar mais o risco do que o benefício, para não induzir nenhum paciente.

Então o senhor refuta que os pacientes tenham sido usados como cobaias?

Eu refuto completamente. O termo cobaia tem sido usado de forma pejorativa, pois todo mundo em estudo clínico está sendo um experimento. Mas todos assinaram os termos. Inclusive, uma orientação minha era que eles fossem orientados a ficar com o termo um período, algumas horas, para ler e terem certeza, e depois eles assinavam.

O que aconteceu foi que na segunda e na terceira semana [de estudo], por conta de uma melhora principalmente nos hospitais onde acabou havendo mais ativos do que placebo, foi um aumento da procura. Na minha segunda visita lá, havia famílias pedindo para entrar na pesquisa e eu sempre com os dois pés atrás. Eu orientava os médicos a dizer sempre que era uma pesquisa, falar que era incerto, uma tentativa.

Como esse caso está impactando na vida profissional do senhor?

Do ponto de vista de clínica e consultório, graças a Deus meus pacientes me conhecem há muito tempo, então houve uma queda zero. Na verdade, houve até aumento na procura, porque eu acho que mostrei que havia plausibilidade no que coloquei. Então, profissionalmente eu tenho meus pacientes, que me apoiam, que têm sido um suporte maravilhoso.

Do ponto de vista de publicação, porém, prejudicou muito. Eu tinha um trabalho praticamente aceito pelo maior jornal do mundo e depois eles rejeitaram sem justificativa, e eu tenho toda a troca de e-mails com o editor-chefe que mostra isso.

Então, essas questões amedrontaram as revistas a publicar. Por conta disso eu não submeti pesquisas a mais nada. E temos uma pesquisa que já estava em andamento para a publicação, que era sobre as tomografias de pulmão dos pacientes do estudo da proxalutamida. Elas foram analisadas por radiologistas completamente independentes e mostraram que houve uma redução de 50% no acometimento pulmonar dentro de cinco dias em relação ao placebo.

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