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“A Covid dizimou a minha família em menos de 10 dias”, relata vereador

Cabo Senna, de Goiânia, teve nove familiares contaminados ao mesmo tempo pela Covid-19. “Achei que ia perder toda a minha família”, revela

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Goiânia – Imagine um tradicional e alegre almoço de domingo em família no período pré-pandemia. Uma daquelas reuniões em que todos se confraternizavam. Agora pense no vazio do momento atual no qual essas reuniões estão suspensas. E, pior ainda, quando voltarem a ocorrer, imagine esses encontros sem a presença de alguns de seus entes mais queridos, que foram ceifados pelo coronavírus. Pois essa é a triste realidade de um vereador de Goiânia.

Nataniel de Sena Soares, o Cabo Senna (Patriota), ainda não sabe de onde tirou forças para resistir e se manter firme diante de tudo o que acometeu sua família em menos de um mês. Nove pessoas foram contaminadas pela Covid-19, seis delas precisaram ser internadas. Dessas seis, quatro chegaram a ficar intubadas ao mesmo tempo na UTI, e três não resistiram. Elas morreram em um intervalo de oito dias.

A mãe, Zélia de Sena Soares, de 80 anos, e o irmão mais velho do vereador, Francisco de Assis de Sena, 56, faleceram no mesmo dia (10/2) e foram enterrados com uma diferença de menos de 4h. O pai, Eduardo de Sousa Soares, 80 anos, morreu no dia 18 de fevereiro, horas depois de o segundo filho mais velho, Rogério de Sena, 54, que também estava na UTI, ter recebido alta.

“Eu estava no olho do furacão. Minha família foi quase dizimada em menos de 10 dias”, diz Cabo Senna, que recebeu o Metrópoles em seu gabinete, na Câmara Municipal de Goiânia. Ele tenta, agora, retomar a rotina e se distrair com os afazeres do dia a dia, mas confessa não conseguir pensar em outra coisa no momento.

O vereador praticamente se mudou, no período recente, para a UTI do Hospital de Campanha para Enfrentamento do Coronavírus (HCamp) de Goiânia, que é a principal unidade de saúde com esse perfil em Goiás. Ele conta que a mãe não enxergava muito bem de um olho e não escutava. Para auxiliá-la nos dias antes da sedação e ajudá-la a responder aos médicos, ele foi autorizado a ficar o tempo todo do lado dela. A comunicação entre os dois era por meio da escrita.

“Levaram papel para lá, aí eu escrevia, colocava os óculos nela, ela lia e fazia o que os médicos mandavam. Ela queria saber toda hora como estava a saturação. Ela perguntava: ‘Como eu tô, meu filho?’. E eu escrevia: ‘A senhora está mais ou menos. Tem que ficar forte, respirar mais’”, relata.

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Desespero e solidão

Cabo Senna não segura o choro, quando fala sobre o desespero e a solidão que sentiu nos dias de UTI e de mortes sucessivas na família. Com quase todos contaminados, restou para ele e para a esposa, que tiveram a doença em junho do ano passado, a função de acompanhar os parentes mais de perto no hospital e, também, de receber as notícias e passá-las adiante.

O vereador tentou ao máximo evitar a repercussão do caso na imprensa, pois não queria que os familiares internados soubessem ou tivessem informações sobre o quadro de saúde um do outro. A intenção era mantê-los fortes e esperançosos. Rogério, por exemplo, o irmão que recebeu alta da UTI horas antes da morte do pai, no dia 18 de fevereiro, só soube do falecimento da mãe e do irmão, que havia ocorrido oito dias antes, quando estava sendo levado para a enfermaria.

“[o desespero] Bateu muito. E só sobrava eu para cuidar e para não transmitir a tristeza que eu estava, porque era eu que recebia todos os boletins da família. Quando os médicos me ligavam, eles falavam: ‘Mas você de novo?’ [chora ao contar] Em um dado momento, eu achei que ia perder toda a minha família. Eu olhava e pensava: ‘Só vai sobrar eu e dois irmãos’”, revela o vereador.

Sobrinhas souberam da morte do pai no enterro da avó

Na madrugada do dia 10 de fevereiro, quando recebeu a ligação do hospital informando a morte de sua mãe, Cabo Senna só se perguntava sobre como faria para contar para os irmãos. Dois estavam intubados na UTI. Outro tinha acabado de receber alta, mas estava bastante fraco e não conseguia se locomover sem que alguém o ajudasse.

“Foi difícil. Eu avisei para os que estavam fora do hospital, que era o caçula da família e minha outra irmã, e falei também para as minhas sobrinhas, que moram em Brasília. Elas são filhas do Francisco, que seguia intubado na UTI. E quando eu estava a caminho do cemitério para enterrar a minha mãe, recebi a notícia da morte dele também. E novamente eu fiquei: ‘E agora, conto ou não conto? Como vou fazer?’”, narra.

Na mesma hora, segundo o vereador, a sobrinha que mora em Brasília ligou e disse que já estavam no trajeto para Goiânia. “Respondi: ‘Então vem com Deus, minha filha’”, conta Cabo Senna, que decidiu segurar a informação até a chegada delas. A esposa de Francisco e as duas filhas ficaram sabendo da morte dele assim que o caixão da avó foi levado à cova.

“Foi a hora da outra dor. Contei da morte do meu irmão para a esposa e para as filhas na hora do sepultamento [da minha mãe], na hora do último tijolo ali. Elas estavam todas chorando e foi quando eu falei. Foi muito difícil”, diz.

Reflexão

Cabo Senna, assim como toda a família, é da igreja Adventista do Sétimo Dia. Ele conta que a fé foi crucial para mantê-lo, minimamente, sereno durante esses dias de tragédia familiar. A reflexão fez-se presente em diversos momentos, principalmente sobre o comportamento das pessoas na pandemia.

O vereador relutou, à princípio, em conceder entrevistas e falar sobre tudo que ocorreu, mas decidiu, em família, que deveria relatar para servir de exemplo, ainda mais diante do que ele define como desrespeito à vida e ao próximo. Para ele, que faz alusão a uma passagem bíblica, a pessoa que é incapaz de respeitar e amar a vida do próximo, é porque não ama a si mesmo.

“Se essas tragédias familiares não conseguirem mexer com as pessoas, eu não sei o que será capaz de sensibilizá-las, porque não estamos aqui inventando uma história da Carochinha, não. Estamos vendo e percebendo através da mídia, das redes sociais, dos hospitais, mas parece que isso não é o bastante. O que está faltando?”, pergunta.

Câmara

O caso de Cabo Senna não foi o único na Câmara de Vereadores de Goiânia. Na mesma época, outro vereador, Lucas Kitão (PSL), perdeu o pai para a Covid-19 no mesmo em que faz aniversário. O aumento do número de casos na cidade e o registro entre vereadores e familiares, inclusive, levou a Câmara a suspender o funcionamento até o início de março.

Apesar da quantidade de familiares contaminados pelo novo coronavírus, Cabo Senna diz não ter ideia de como a doença teria se espalhado tanto entre eles. Ele lembra que a Covid-19 está bastante disseminada em Goiânia e volta a pedir para que as pessoas tenham muito cuidado e mais consciência, para que ninguém passe pelo o que ele está passando. “Qualquer um está exposto”, resume.