Na manhã de uma segunda-feira recente, Lícia Teles chegava ao seu prédio, na Quadra 316 da Asa Norte, em Brasília, quando viu pelo retrovisor o caminhão dos bombeiros e desviou seu carro para a garagem, abrindo passagem para o veículo. Imaginou que poderia ser para atender um chamado num edifício vizinho porque, meses antes, um princípio de incêndio atingira um apartamento ali.

Lícia estacionou na garagem subterrânea e subiu para seu apartamento pelo elevador. Fora a presença dos bombeiros, a quadra parecia tranquila como sempre. No comércio contíguo, dona Maria fazia reparos nas roupas de clientes. Seu Antonio começava o turno na mesma guarita do Bloco E, onde bate ponto desde 1990.

Na escola classe vizinha, os alunos voltavam do recreio, interrompendo o burburinho de crianças brincando que se escuta a cada manhã. Pouco antes, Diva Maria e seu filho, Régis, chegaram em casa depois de um fim de semana em Goiânia, onde ele prestou um concurso público.

Na portaria, Antonio viu quando, pouco depois da entrada de Diva e Régis, às 10h12, Ranulfo, o pai da família, também subiu. Viu também quando, quase em seguida, ele saiu outra vez, caminhou calmamente até seu carro, estacionado em frente, e partiu.

Nos 10 minutos em que esteve dentro do seu apartamento, de número 115, no primeiro andar, Ranulfo atirou quatro vezes contra o filho e cinco vezes contra a mulher. Régis ficou no chão da sala agonizando. Diva morreu na hora.

O som dos disparos, tão estranho à classe média de Brasília, protegida na melancolia das superquadras, com seus prédios com porteiro e janelas com vista para o verde, foi confundido pelos vizinhos com o estouro de balões de aniversário. Só quem escutou a confusão foram as duas vizinhas mais próximas.

Como aconteceu o crime

Quando Antonio, o porteiro, viu Ranulfo do Carmo caminhar até o carro, não imaginou que aquele senhor de cabelos brancos e roupa social, que vivia no prédio desde 1992, estava fugindo da cena de um crime. Só quando uma vizinha de Diva desceu as escadas esbaforida chamando por socorro, Antonio entendeu o que se passava. Chamou a polícia e os bombeiros imediatamente.

Em fuga num Crossfox branco, Ranulfo já estava no Park Way, a 20 quilômetros de casa, quando foi interceptado por um helicóptero da Polícia Militar que fazia ronda na região. Ranulfo não resistiu à prisão. Em audiência de custódia, dispensou advogados. No depoimento, não negou o crime nem expressou remorso. Hoje, espera pelo julgamento preso no Complexo Penitenciário da Papuda. Ele deverá responder por feminicídio e tentativa de assassinato.

Uma amiga de Diva me disse que Ranulfo não assassinou Diva em 28 de janeiro de 2019. Ele a matou todos os dias ao longo dos 50 anos de casamento.

O histórico de agressões era antigo: Diva apanhava, era ofendida e humilhada constantemente. Todos ao seu redor sabiam. Pode-se dizer, então, que era uma tragédia anunciada? Diva tinha 69 anos. Ranulfo, 72. A média de idade das mulheres vítimas de feminicídio está entre 15 e 49 anos. Apesar do passado de violências, espera-se um desfecho assim cinco décadas depois, já na velhice?

“Eu tinha medo do relacionamento deles, mas jamais imaginei essa barbaridade que ele fez”, me disse Rejane, a filha, de 42 anos, numa breve mensagem.

Rejane e o irmão, Régis, 47, recuperado do atentado e vivendo com ela no Lago Sul, decidiram não falar sobre a história dos pais. Já entre os amigos e vizinhos, relembrar momentos de convívio com o casal, mais do que um processo de cura, se tornou uma investigação forense.

Depois de ver o carro dos bombeiros chegar, Lícia Teles subiu para seu apartamento sem suspeitar de nada. Assassinatos não são comuns nas quadras residenciais do Plano Piloto de Brasília. O crime, em pouco tempo, era notícia em todos os jornais.

Uma amiga moradora da mesma quadra telefonou: “Viu que mataram uma mulher aí no seu prédio?”. Só então Lícia desceu as escadas e encontrou os vizinhos incrédulos, reunidos nos pilotis do prédio. “E assim eu descobri que tinha perdido minha amiga”, me contou dias depois.

Lícia recebia Diva em casa às quintas-feiras para um grupo de oração semanal. No encontro depois da tragédia, rezaram pela amiga ausente. Na gaveta, Lícia guardou um santinho distribuído em uma missa em homenagem a Diva, onde se lê: “Se você quiser me encontrar, não vá aos lugares por onde andei ou morei, já não moro em minha casa, nem viajo mais por aí… Se você quiser me encontrar, pare um pouco e, em silêncio, pense em mim. Se você quiser me encontrar, olhe bem dentro de você. Sinta seu coração bater forte e sinta-se feliz. E se você quiser me encontrar, eu estou aí, dentro do seu coração”. Para Lícia, foi a mensagem póstuma mais bonita que já viu.

Arquivo Pessoal
Na missa de sétimo dia de Diva, a família distribuiu um santinho com uma linda mensagem

Lícia não sabia que Ranulfo batia em Diva, mas sabia que a amiga temia o marido. Hoje, vê em pequenas situações passadas pistas que explicam a tragédia. Quando quis reformar sua casa para integrar a varanda à sala de estar, pediu para visitar o apartamento deles, também no primeiro andar, mas com acesso por outra portaria.

“Ela ligou antes para ter certeza de que o marido não estava em casa. Mas quando estávamos lá, ele chegou. Percebi que ela ficou com medo de ele reclamar”. Mas Ranulfo foi simpático e só disse que, se fosse por ele, não teria coberto a varanda. “Na frente dos outros, era assim, um gentleman”.

Gentleman foi como três pessoas me descreveram Ranulfo do Carmo Silva. No disse me disse entre a comunidade em choque, é mais provável que o adjetivo, em inglês, seja um eco inconsciente – alguém comentou espontaneamente e os demais julgaram ser uma boa definição. Ao pedir que explicassem melhor a escolha da palavra, foram mais lacônicos: “um homem discreto”, “um senhor que sempre dava bom dia”, “um vovô de cabelos brancos”.

Na verdade, pouco sabiam sobre ele. Ranulfo comercializava carros – comprava veículos usados, muitas vezes em Goiânia, e os revendia em Brasília por meio de anúncios postados na internet. Antonio, o porteiro, o ajudou algumas vezes a usar o site OLX, mas depois ele se virou sozinho. Quando era visto debaixo do prédio, quase sempre estava na companhia do neto, Gabriel, com quem era amoroso.

Divulgação/PMDF
Ranulfo não resistiu à prisão, não negou o crime nem expressou remorso no depoimento

Entre as amigas mais próximas da vítima, Ranulfo não era bem-visto. Maria, a costureira, 20 anos mais nova do que Diva, se recorda que o assunto era contumaz entre as duas. “A Diva era uma diva não só no nome. Chegava aqui sempre muito bem-vestida, com o cabelo arrumado, o brinquinho de pérola, sempre de óculos escuros, apesar de ter os olhos muito azuis”, diz.

Uma vez feito o pedido do dia – fazer a barra de uma calça ou recolocar o botão de uma camisa -, Diva passava a se queixar de Ranulfo. “Só falava do marido, que ele era uma miséria, uma desgraça. Mas ela era aquele tipo de mulher que casou para ficar casada para sempre”. Apesar dos fartos relatos de violência doméstica, Diva nunca denunciou o marido.

Hoje, Maria costura o que sabe com o que ouviu dizer e monta uma imagem retalhada da amiga. “Estão dizendo que o marido estava com ciúme do zelador, mas ela nunca teve amante. Quem tinha amante era ele, que ela contava”. Um senhor sentado no sofá da loja de costura, que não conheceu Diva, mas soube do crime pelos jornais, interrompeu: “Mas ciúme é uma coisa que o cara inventa para poder brigar”.

Maria não sabia de histórias do início do relacionamento do casal, mas tentou especular: “No começo o casamento devia ser bom, né? Ouvi dizer que ela amava muito ele, por isso aguentava o que aguentava. Ela fazia tudo, limpava, cozinhava. Mas ele tratava a Diva como se fosse um cachorro”.

Assim como Maria, Tatiana Martinelli, 41 anos, amiga da família, acredita que Diva não se separou por fazer parte de uma geração na qual uma mulher divorciada era uma pária. Ou ainda porque não queria atrapalhar a vida dos filhos ao ter que morar com algum deles. Mas Tatiana também se questiona por que Ranulfo não foi embora, por que não deixou aquela casa e foi viver com alguma amante.

“Diva falava que nunca foi feliz. Ela dizia: ‘Eu queria um dia ser amada, porque nunca fui’. Acredito que a relação era complicada desde que eles se casaram”

Tatiana Martinelli, 41 anos, amiga da família

Nataljara, a mãe de Tatiana, era uma das melhores amigas de Diva. Ambas tinham um casal de filhos da mesma idade e os netos também se aproximaram. Sempre bem maquiada, com os cabelos pintados, Diva gostava de visitar Natal para conversar e ouvir música durante a tarde. Uma das canções que elas mais ouviam era do Chitãozinho e Xororó. Hoje, a letra de “Se Deus me Ouvisse” soa como um mau presságio.

Tatiana, filha de Natal, lembra do mal-estar a cada vez que Diva se queixava da vida ao lado do inimigo íntimo. “Eu pensava que devia ser muito penoso passar a vida assim. Ela saía daqui e a energia ficava pesada, mas o pior é que esse era o jeito de ela extravasar.”

Por mais de uma vez, Diva disse que um dia Ranulfo a mataria. “Acho que ela pensava matar de raiva ou de tanto desgosto. Mas acho que ela nunca imaginou que seria assassinada. A expressão dela morta era de alguém que estava muito assustada, de quem estava apavorada.”

Já adulta, ao passar por Ranulfo, Tatiana preferia evitá-lo porque sabia tanto das histórias que Diva contava para sua mãe como dos relatos de agressões verbais e físicas contra os filhos. Ela, George, Rejane e Régis se tornaram amigos ainda na adolescência. “Ele maltratou a família inteira, fazia eles passarem fome quando criança. Até tinha dinheiro para comprar comida, mas não comprava para maltratá-los.”

Mapa

Em depoimento, Rejane contou que a mãe sofria “agressões físicas, ameaças, abusos e todo tipo de constrangimento” por parte do pai e que, quando ela e o irmão a defendiam, também eram agredidos e ameaçados de morte. Ranulfo não negou. Segundo ele, o relacionamento com os filhos “sempre foi conturbado com agressões físicas e discussões”.

Ranulfo, pela descrição da filha, demonstrava um comportamento doentio, ciumento e possessivo – traço comum entre homens que matam suas companheiras. Régis, temeroso da relação dos dois, visitava a mãe invariavelmente todos os dias.

Em A Paixão no Banco dos Réus, a procuradora Luiza Nagib Eluf analisa os assassinatos da socialite Ângela Diniz, da atriz Daniella Perez, da jornalista Sandra Gomide, entre outros crimes famosos. Nesses casos, chamados no livro de crimes passionais, a paixão que move os autores não é resultado do amor, mas do “ódio, da possessividade, do ciúme ignóbil, da busca da vingança, do sentimento de frustração aliado à prepotência, da mistura de desejo sexual frustrado com rancor”.

Para a autora, os assassinos – em geral, ególatras e imaturos emocionalmente – veem a mulher como posse. Posse, nesse caso, não precisa ser apenas pelo relacionamento sexual mas também pelo fator econômico. “O homem, em geral, sustenta a mulher, o que lhe dá a sensação de tê-la ‘comprado’. Por isso, quando se vê contrariado, repelido ou traído, acha-se no direito de matar.” Por fim, invocam a “defesa da honra” para justificar para si ou para os outros que seu crime era a única decisão possível.

No meio da apuração desta reportagem, conversando com minha mãe e minha tia, comentei sobre as dificuldades de escrever a respeito de um caso de feminicídio, quando uma mulher é assassinada pelo fato de ser mulher, porque a investigação atravessa a intimidade conjugal e familiar.

Segundo o último relatório global da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre homicídios, divulgado em 2018, de 87 mil mulheres assassinadas no mundo, 58% foram mortas por parceiros ou familiares – o que significa que 137 mulheres são mortas a cada dia por alguém do seu círculo íntimo. Em casos em que o assassino é o pai, o irmão, o avô ou o companheiro de uma vida, por exemplo, os depoimentos abordam traumas de infância, segredos de família e sentimentos inauditos.

Todos os agentes públicos envolvidos na investigação do assassinato de Diva foram cuidadosos em não passar informações além das essencialmente restritas ao momento do crime. Mais que isso, disseram, poderia expor a família.

Rafaela Felicciano/Metrópoles
Na manhã do dia 28 de janeiro de 2019, moradores do Bloco E da 316 Norte não imaginavam que um crime aconteceria no local
Na manhã do dia 28 de janeiro de 2019, moradores do Bloco E da 316 Norte não imaginavam que um crime aconteceria no local

De minha parte, tentava me equilibrar entre o incômodo de insistir para que os filhos e as irmãs de Diva falassem sobre um trauma tão recente e a convicção de que só contando detalhes da vida dela outras mulheres poderiam se reconhecer e interromper o ciclo de violência em que vivem. Nomear o problema é um começo. Enxergar-se em outras mulheres pode ser uma saída.

Minha tia, então, falou sobre uma parte da vida dela que eu não conhecia: das agressões físicas impostas pelo primeiro marido, dos xingamentos, do pretenso ciúme enquanto era ele quem a traía, do medo de se separar e ser julgada, do medo de se separar e, sem nunca ter tido uma profissão, não conseguir sustentar a família. Comentou do apoio que recebeu das amigas, de que, sim, ela era forte e criaria os filhos sozinha. Que seria melhor sem ele. Ela nunca denunciou o ex-marido, mas acreditou nas amigas e se separou para, hoje, prestes a ser avó, estar viva para contar sua história.

Carol Pires

É jornalista e roteirista. Colaboradora do New York Times em Español, trabalhou nas redações da revista Piauí e do jornal Estadão. Suas reportagens já foram publicadas por revistas como Etiqueta Negra (Peru), Gatopardo (México), Internazionale (Itália), e Courrier International (França), e ainda nas coletâneas Atención: Die besten Reportagen aus Lateinamerika, da editora austríaca Czernin, Tempos Instáveis, da Companhia das Letras, e Crónicas, pela editora da Universidade Nacional do México. É mestre em estudos latinoamericanos pela Columbia University em Nova York, onde estudou a influência do preconceito de gênero nas coberturas eleitorais.

Elas por elas

Neste 2019, o Metrópoles inicia um projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.

Até sexta-feira (22/3), 3.387 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatarem abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados seis feminicídios e 16 tentativas. Segundo a polícia, apenas uma pequena parte das mulheres que vive situações de violência rompe o silêncio para se proteger.

O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.

Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.

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