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Tirar criança da escola é crime, mas pandemia justifica, dizem juristas

Pais de crianças menores de 6 anos têm um desafio a mais na atual crise, pois pequenos não se concentram para as aulas virtuais

atualizado

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A educação infantil em casa é um drama a mais entre tantos trazidos pela pandemia que marca o ano de 2020. Crianças pequenas, de 4 a 6 anos, têm a obrigação legal de estarem matriculadas na escola, mas é difícil para elas acompanhar aulas virtuais. E a possibilidade de uma volta às salas de aula preocupa os pais, porque manter protocolos de distanciamento social nessa idade é um enorme desafio. Tanto que muitos pais estão tirando ou querem tirar os filhos da escola por causa dos efeitos do coronavírus. Mas isso não é crime?

Na letra fria da lei, sim. Quem não matricula na escola menores entre 4 e 17 anos de idade comete o crime de abandono intelectual e pode ser enquadrado pela Justiça ou cobrado pelos conselhos tutelares. Em um contexto de pandemia, porém, a lei precisa ser interpretada levando isso em conta, segundo especialistas ouvidos pelo Metrópoles.

Como o poder público não sinalizou novas concessões, juristas e pedagogos acreditam que a questão vá parar na Justiça, com forte tendência de não responsabilização de pais que optarem por não deixar que seus filhos pequenos voltem às escolas este ano.

Sem grandes prejuízos

Mais importante do que situações burocráticas e jurídicas, de acordo com esses especialistas, é a questão pedagógica. E, para esse período de pré-escola, as opiniões indicam que não há grandes prejuízos ao aprendizado.

“É um período do desenvolvimento em que as crianças têm um cérebro com muita plasticidade. Elas ainda não têm aulas naquele modelo clássico, é um aprendizado por meio de atividades lúdicas, brincadeiras, contação e interpretação de histórias. É um aprendizado pela experiência”, explica Eduardo Marino, diretor de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, especializada em educação infantil.

“Então, não estar na escola não vai ser tão prejudicial, sobretudo se os pais puderem desenvolver atividades que sejam educativas, incluam leitura, apresentem os números. Se a criança só puder voltar para a escola no ano que vem, ela recupera fácil coisas que perdeu nesse período”, completa Marino, que diz compreender a angústia de muitos pais com o ensino em casa nessa fase.

“Já enviamos uma nota técnica ao Ministério da Educação, porque entendemos que não funciona direito para uma criança ter aulas em frente a uma tela”, pontua Marino. “As atividades mais positivas nesse modelo ocorrem quando a escola consegue instruir os pais de como participar, mas sabemos que é uma situação bem específica. Na maior parte dos casos, os pais terão dificuldades em ver utilidade na aula a distância para alguém de 5 anos”.

Momento de estresse

É o que acontece com a publicitária Isabel Machado, que mora em São Paulo e tenta lidar com as aulas virtuais das duas filhas gêmeas de 5 anos. “É uma idade que não faz o menor sentido a aula on-line. Virou um momento de estresse grande, porque muitas vezes elas tentam falar, mas a professora não escuta porque outros estão falando, e ficam ansiosas, nervosas”, conta.

No estado de São Paulo, assim como no Distrito Federal, o governo prevê a volta às aulas presenciais este ano ainda, mas essa perspectiva assusta Isabel. “Algumas mães do grupo da escola até comemoraram, mas não acho uma boa, porque como uma criança vai cuidar de máscara sozinha e seguir protocolo de distanciamento?”, questiona.

“E escola é contágio. Desde os 2 anos as meninas emendam doenças. E, nesses três meses em casa, não pisei na farmácia por conta delas”, relata Isabel, que gostaria de poder optar por tirar as filhas da escola enquanto não se sente segura.

Mas e a lei?

A frustração com as aulas virtuais e o medo da volta presencial já estão levando pais a optarem por tirar da escola as crianças pequenas, sobretudo em escolas particulares que mantiveram a cobrança.

A jornalista Thaís Cieglinski, que mora em Brasília, decidiu cancelar a matrícula do filho de 4 anos na escola, no mês que vem, e pretende deixar no ensino regular apenas a filha adolescente, de 15.

“Não acho justo pagar pra ele ter três aulas on-line de meia hora por semana. Ele não se adaptou, não se concentra, é muito pequeno”, relata Thaís, que é sensível à situação financeira da instituição de ensino e manteve a matrícula até agora por isso. “Mas acho que a escola podia ser mais flexível com as mensalidades”, diz ela, que teve desconto de 15% até setembro, mas achou a redução insuficiente.

Pressão velada

Outras mães e pais com filhos matriculados na mesma escola do filho de Thaís, porém, estão sendo surpreendidos com a exigência da assinatura de um documento dando ciência da lei de abandono intelectual. “É uma pressão velada, informando que temos de assinar um documento meio que para produzir a prova de que a gente tem ciência de que tem uma lei que regula isso”, conta a jornalista.

Muitos pais, no entanto, estão se recusando a assinar – e a escola não pode obrigá-los. “Essa é uma pressão das escolas particulares temendo prejuízos”, avalia a advogada Diana Serpe, da Serpe Advogados e especialista em casos envolvendo educação. “A verdade é que as escolas não estão cumprindo a lei, então é desigual exigir que os pais sigam uma norma que os colégios não têm condições de colocar em prática no momento”, assinala.

Diana diz ser procurada por muitos pais para falar sobre esse cenário. “Estou dizendo a eles que a situação é nova e que não devemos temer a lei como se pandemia não houvesse. Eu não creio que a Justiça entenderá como abandono intelectual”, opina ainda a jurista.

As respostas governamentais, porém, ainda não mostram disposição ao diálogo. “Não há nenhuma excepcionalidade legal que desobrigue os pais ou responsáveis a deixarem seus filhos sem matrícula por conta da pandemia. O fato da adaptabilidade de ensino diante da suspensão das aulas presenciais não desobriga os pais ou responsáveis de terem seus filhos matriculados na escola”, informou a Secretaria de Educação do DF após consulta do Metrópoles.

“Caso o Conselho Tutelar identifique tal situação, os pais ou responsáveis responderão criminalmente conforme legislação vigente”, conclui a nota.

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Peculiaridade

Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista e promotor de Justiça aposentado do Estado de São Paulo, como a colega Diana Serpe, Luiz Antonio Miguel Ferreira diz achar “muito difícil que a Justiça venha a responsabilizar um pai que não mande uma criança para a escola em um contexto de pandemia”.

“É uma situação muito específica. Veja São Paulo, estado que prevê a reabertura das escolas este ano e deixou de fora do plano o ensino infantil para tomar a decisão mais para frente. É a população mais difícil de manter distanciamento social, então o poder público não vai poder ignorar essa peculiaridade”, opina ele, que não aconselha pais a manterem seus filhos na escola só por medo da lei.

“Estamos vivendo uma situação de excepcionalidade e teremos de interpretar regras tendo em vista o contexto da pandemia. Mesmo uma criança que provavelmente não sofreria se pegasse o vírus estaria correndo o risco de infectar um idoso em casa. Isso será levado em conta”, avalia Ferreira.

O promotor aposentado lembra ainda que uma resolução do Conselho Nacional de Educação já prevê que, este ano, crianças que completem 60% de frequência já podem ser consideradas aprovadas. “Até porque não há testes nessa época, é apenas a frequência”, frisa.

MEC ausente

O Metrópoles questionou o Ministério da Educação sobre estudos relacionados a soluções para o ensino infantil em contexto de pandemia, mas a pasta, mergulhada em crise e sem ministro titular, não respondeu até a publicação desta reportagem. O espaço está aberto.

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