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Tensões e dependência marcam a relação entre Brasil e China em 2020

Este ano foi marcado por ataques brasileiros ao país asiático, como as declarações sobre “vírus chinês”, “espionagem tecnológica” e racismo

atualizado

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Isac Nóbrega/PR
Bolsonaro viagem China
1 de 1 Bolsonaro viagem China - Foto: Isac Nóbrega/PR

A China é a maior parceira comercial do Brasil há uma década. A despeito disso, o ano de 2020 apresentou novos capítulos do imbróglio diplomático que marca a relação entre os dois países desde a posse de Jair Bolsonaro (sem partido), em janeiro de 2109: críticas públicas à China, chamando o coronavírus de “vírus chinês, e acusações de “espionagem tecnológica” em relação a 5G deram o tom desse convívio.

No que tange às relações comerciais, a fatia da participação chinesa nas exportações brasileira subiu para 33% no acumulado de janeiro a novembro de 2020, gerando um saldo positivo de US$ 32,6 bilhões, de acordo com os dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic), que foi incorporado à pasta da Economia. Em 2019, a fatia tinha sido de 28%, com saldo de US$ 25 bilhões.

Os Estados Unidos, que são o segundo maior parceiro comercial, representam 9,9% da exportação no acumulado deste ano, gerando déficit de US$ 3 bilhões.

Os três principais itens da pauta de exportação brasileira são soja, minério de ferro e petróleo. No acumulado de janeiro a novembro de 2020, a China adquiriu 73% das importações brasileiras de soja; 71% da exportação de minério de ferro; e 60% de petróleo.

O professor de Economia Guilherme Mello, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), assinala que o Brasil é mais dependente da China do que o inverso.

“Os produtos que o Brasil exporta para China são commodities, produtos menos sofisticados, que ela pode encontrar alternativas em outros fornecedores e ela já está fazendo isso nos últimos tempos, comprando soja de outros lugares, até mesmo minério de ferro de outros fornecedores”, pontua Mello.

“Por sua vez, os produtos que a China constrói são uma especialidade própria, produtos manufaturados, telecomunicação, mais complexos. São produtos que, por sua natureza mais complexa, não têm tantas alternativas assim. Então, cria certa dependência, porque não produz e não tem tantas alternativas para substituir”, acrescenta Mello.

O professor de Relações Internacionais Renan Holanda, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), destaca, contudo, que o peso da China no Brasil não se traduz apenas nas relações comerciais entre os dois governos. Holanda aponta as relações subnacionais do país asiático com o governo de São Paulo, com o setor do agronegócio, com o Fórum de Governadores do Nordeste e até com a Câmara dos Deputados para sustentar essa avaliação.

Esses dados refletem um pouco do peso que o país asiático possui na economia brasileira, mas foi a retórica anti-China, associada à postura dos Estados Unidos, que mais movimentou a diplomacia brasileira neste ano.

“Vírus chinês”

Em meados de março, pouco tempo depois de eclodir a pandemia da Covid-19, cujos primeiros casos foram registrados na província de Wuhan, na China, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho “03” do presidente da República, Jair Bolsonaro, e ex-presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, usou as redes sociais para acusar o país asiático de estar por trás do vírus.

A atitude dele foi o “start” para grupos bolsonaristas nas redes sociais passarem a usar a expressão “vírus chinês”.

O embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming, repudiou com veemência as declarações do filho do presidente, assim como fez a Embaixada da China no Brasil.

Racismo

Dias depois, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, usou o Twitter para mais um ataque. Ele usou uma capa da Turma da Mônica para ridicularizar os chineses.

“Geopolíticamente, quem podeLá saiL foLtalecido, em teLmos Lelativos, dessa cLise mundial? PodeLia seL o Cebolinha? Quem são os aliados no BLasil do plano infalível do Cebolinha paLa dominaL o mundo? SeLia o Cascão ou há mais amiguinhos?”, perguntou. A mensagem foi apagada.

Já o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, usou um blog pessoal para criticar a China e denunciar um suposto plano comunista para tirar proveito da pandemia, o que chamou de “comunavírus”.

Coronavac

O presidente Jair Bolsonaro também deu sua contribuição para o imbróglio diplomático com a China, envolvendo a Covid-19. Numa guerra particular com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), Bolsonaro fez de tudo para minar a confiança na Coronavac, vacina desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac com o Instituto Butantan, ligado ao governo paulista.

O episódio ocorreu após Bolsonaro contradizer o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, acerca da aquisição do imunizante. O presidente disse que a “vacina chinesa do João Doria” não seria comprada.

Em meio às disputas políticas entre Bolsonaro e Doria, que neste caso afetam diretamente a China, o embaixador chinês foi ao Twitter lembrar sobre os investimentos do seu país no Brasil.

Tecnologia 5G

Em meados de novembro, Eduardo Bolsonaro voltou a atacar. Desta vez, antecipando um tema que certamente será alvo de debate em 2021, a tecnologia 5G.

O filho 03 do presidente acusou, nas redes sociais, a China de usar a tecnologia 5G para praticar espionagem cibernética. “O governo Jair Bolsonaro declarou apoio à aliança Clean Network, lançada pelo governo Donald Trump, criando uma aliança global para um 5G seguro, sem espionagem da China”, escreveu.

“O programa ao qual o Brasil aderiu pretende proteger seus participantes de invasões e violações às informações particulares de cidadãos e empresas. Isso ocorre com repúdio a entidades classificadas como agressivas e inimigas da liberdade, a exemplo do Partido Comunista Chinês”, acrescentou. Pouco depois, apagou o texto.

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A embaixada chinesa definiu as declarações do parlamentar como inaceitáveis. “Instamos essas personalidades a deixar de seguir a retórica da extrema direita norte-americana, cessar as desinformações e calúnias sobre a China e a amizade sino-brasileira, e evitar ir longe demais no caminho equivocado, tendo em vista os interesses de ambos os povos e a tendência geral da parceria bilateral. Caso contrário, vão arcar com as consequências negativas e carregar a responsabilidade histórica de perturbar a normalidade da parceria China-Brasil”, disse.

O Itamaraty, por sua vez, saiu em defesa do filho do presidente, criticando o “tom ofensivo” da nota chinesa e o fato de a manifestação ter ocorrido via redes sociais. “Não é construtivo, cria fricções completamente desnecessárias e apenas serve aos interesses daqueles que, porventura, não desejam promover as boas relações entre Brasil e China”, acrescentou.

Holanda destaca que a tecnologia 5G é o elemento a se observar em 2021. “Não fosse o lobby gigantesco da Casa Branca, que deve permanecer com o governo [Joe] Biden, muito possível que esse leilão já teria acontecido e a Huawei já teria vencido”, diz Holanda, acrescentando que o serviço que a empresa chinesa oferece é mais barato e mais competitivo do que as demais.

Longo prazo

As tensões diplomáticas começaram ainda na campanha presidencial de 2018, quando Bolsonaro já criticava a China. À época, ele viajou à Taiwan – território autônomo considerado pela China uma província rebelde – e disse que o gigante asiático estaria comprando o Brasil. Ao ser eleito, começou um trabalho para apaziguar as relações.

Entretanto, sua ligação com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e a adoção da retórica trumpista contra a China voltou a tensionar as relações.

“Os conflitos ideológicos do filho do presidente e de Ernesto Araújo podem, sim, prejudicar a nossa relação, não imediatamente, no curto prazo: a China é pragmática na relação com outros países. Mas dificulta a realização de acordos que poderiam beneficiar o Brasil, como por exemplo em ciência e tecnologia, de trazer empresas mais sofisticadas para cá, novas tecnológicas para incorporar ao parque produtivo”, pondera Mello.

“O cálculo chinês não será de curto de prazo, levando em consideração que Bolsonaro é passageiro”, avalia Holanda.

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