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Pacientes de Manaus em Goiás: da falta de ar e quase morte ao alívio da cura

Amazonenses contam ao Metrópoles as angústias dos dias de busca por tratamento: “Se não tivessem nos transferido, teríamos morrido”

atualizado

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Ascom/HC UFG
Paciente transferido de Manaus para Goiânia
1 de 1 Paciente transferido de Manaus para Goiânia - Foto: Ascom/HC UFG

Goiânia – Aos poucos, parte dos pacientes levados de Manaus (AM) para Goiás, em decorrência da crise sanitária gerada pela falta de oxigênio e leitos da Covid-19 no Amazonas, volta para casa. O retorno é motivo de alegria e alívio, mas, na memória, persistem imagens e sensações dos dias de desespero, marcados pela luta para respirar e ter o mínimo de tratamento hospitalar. O simples movimento de respirar, tão natural e espontâneo, representava esforço gigantesco, para eles.

O Metrópoles conversou com alguns dos 49 pacientes que receberam alta médica após serem transferidos para Goiânia e para a região metropolitana de Aparecida de Goiânia. O primeiro grupo, de 33 pessoas, viajou em 18 de janeiro, e o segundo, de 16 pessoas, foi levado pela Força Aérea Brasileira (FAB) em 29 de janeiro. Até o momento, 19 voltaram para casa e 10, que chegaram em estado gravíssimo, não resistiram. Os demais seguem internados.

Em Goiás, eles foram divididos entre o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC/UFG), na capital, e o Hospital Municipal de Aparecida de Goiânia (HMAP), na região metropolitana.

A certeza dos sobreviventes é que, se não tivessem sido retirados de Manaus e transferidos para Goiás, o pior seria uma questão de tempo. E era justamente o passar do tempo, naquela situação asfixiante, que os angustiava ainda mais.

“Quando a médica me perguntou se eu queria ir para outro estado, eu disse: ‘Doutora, eu só quero respirar’”, lembra o estudante de direito, dj e motorista de aplicativo Thiago de Águila Duarte, 25 anos. Despedir-se da mãe foi impossível, pois ele não suportava falar e respirar ao mesmo tempo – era uma coisa ou outra. “Eu falava e começava a soluçar. A respiração travava na hora”, descreve.

No trajeto entre Manaus e Goiânia, o jovem precisou de duas cápsulas de oxigênio no avião. A entrada e a saída da aeronave revelaram-se os momentos mais tensos. Ele recorda que, no pouso, ao precisar se levantar para sair, sentiu como se o pulmão tivesse parado. “Eu tive de parar, dar uma respirada, olhei para cima e orei. Fechei os olhos e pedi muito a Deus. Fiquei uns dois minutos parado e não conseguia respirar. O médico falava: ‘Thiago, vamos!’, mas eu não conseguia reagir”, relata.

O rapaz teve 50% dos pulmões comprometidos pela Covid-19. Parte da internação ocorreu na unidade de terapia intensiva (UTI) e parte na enfermaria do Hospital Municipal de Aparecida de Goiânia (HMAP). À época, ele só pensava nos familiares, na distância e no modo como familiares recebiam notícias. Na cama, a equipe hospitalar fixou fotos do filho de 4 anos e dos sobrinhos para que Thiago se sentisse, de alguma forma, próximo à família.

Angústia na solidão da enfermaria:
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Diante da distância da família e do fato de que muitos dos pacientes pisaram, pela primeira vez, em Goiás ou mesmo fora do Amazonas, a solidão dentro do hospital ficou ainda mais acentuada. A aposentada Maria de Fátima Coelho, 68, viveu momentos de angústia. “Eu fiquei muito depressiva, passando por aquela situação toda e só me sentia melhor quando fazia uma chamada de vídeo com o meu esposo e parentes. Aí, aliviava um pouco”, diz.

Ela ficou sozinha numa enfermaria do Hmap, e a solidão, para ela, foi um dos aspectos mais difíceis de enfrentar durante todo o processo de transferência. O Metrópoles teve acesso a vídeos feitos pelo marido de Maria, o radioperador João Coelho, 62, que mostram o momento em que ela estava sendo preparada no hospital, em Manaus, para ser levada de ambulância para a base aérea de onde seguiria para Goiás. Emocionada, ela tentava conter o choro para não atrapalhar a respiração.

“Não chore, tia. Não chore”, pedia uma sobrinha, enquanto o marido fazia questão de dizer que, no dia seguinte, ele estaria chegando a Goiás para ficar perto dela. “Para deixar a minha mulher mais confortável, com recurso próprio e ajuda de amigos que contribuíram com a minha estadia lá, eu fui para Goiás para ficar ao lado dela”, conta João.

Maria chegou a ter 75% dos pulmões comprometidos, no auge da doença. “Ficar sem oxigênio é terrível. Às vezes, eu puxava o ar e não vinha. Eu tinha medo de não aguentar”, detalha. Em Manaus, ela chegou a passar dois dias no hospital sentada numa cadeira, à espera de um leito. “Foi um sofrimento, viu? Não foi brincadeira, não.”

Agora em casa, Maria tem seguido uma rotina de cuidados para se recuperar das sequelas deixadas pela Covid-19. “A lição que fica é que a vida tem muito valor. E é isso que vai ficar para todos nós”, reflete a aposentada. Ela está em casa desde domingo (31/1), assim como os conterrâneos Daniel Lopes ­­de Morais, 44, e Davi Fernandes, 42. Eles pegaram o mesmo voo de volta.

Primeiro voo da vida

Daniel é encarregado de manutenção, e Davi trabalha como mecânico. Além de compartilharem a experiência em razão das complicações geradas pelo novo coronavírus, o primeiro voo de avião dos dois foi justamente na situação de transferência para outro estado. “Eu tinha tanta vontade de voar de avião, mas não assim, tão doente, indo me tratar. Era para me divertir”, explica Daniel.

Lá do alto, vendo as nuvens e aquela paisagem jamais vista até então, a calmaria do céu durante o voo contrastava com o que o mecânico Davi havia presenciado nos dias em que percorreu as unidades de saúde de Manaus. Um homem faleceu ao lado dele, ao se recusar a ser atendido em outro estado. “Ele falou para a irmã dele que morreria lá. Era um senhor que estava entubado. Muitas famílias recusaram a transferência, por medo”, conta.

Daniel e Davi não hesitaram diante da oportunidade. No caso de Daniel, foi tudo tão rápido que ele chegou a Goiânia sem nenhum documento. Não deu tempo. A esposa viajou para a capital goiana dias depois, para levar os documentos e ficar mais próxima do marido. “Ela estava angustiada e achava que ia me perder, assim como perdeu o pai para a Covid-19, em agosto do ano passado”, revela.

Nos dias de enfrentamento à doença em Manaus, Daniel chegou a se deparar com as portas fechadas de algumas unidades de saúde. “Isso foi o que mais me chocou em 15 de janeiro. As portas fechadas, pessoas chorando e eu passando mal. Pegava um Uber e ia para outro hospital, também com as portas fechadas, e eu achava que não encontraria lugar para me tratar”, destaca.

Ele faz uma analogia da falta de ar que sentiu naqueles dias com a sensação de estar embaixo d’água, prendendo a respiração. “Foi difícil, mesmo. Eu ficava imaginando: ‘Meu Deus, será que não vou conseguir?’”. Em Goiânia, nos dias em que ficou internado no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC/UFG), Daniel lembra que não conseguia ficar em pé nem caminhar.

O descuido deixou uma lição

Davi sentiu dificuldades semelhantes. Ele é religioso, acredita em Deus e pensou que isso bastaria para não pegar a doença. Tanto que ele nem mantinha uma rotina de cuidados, não usava máscara de proteção nem sequer lavava as mãos com frequência. “Achei que Deus tomaria conta, mas essa doença é maldita. Muita gente acha que é imune. Eu mesmo trabalhava como se estivesse imune. Nunca pensei que pegaria isso”, assume.

O descuido deixou um aprendizado. Hoje, ele diz saber que agiu de forma errada. “Achei que ia morrer”, confessa. O mecânico chegou ao ponto de não conseguir ir ao banheiro, por causa da falta de ar. Com o corpo cansado, ele relata que, quando ficava em pé e se locomovia, tinha medo de cair.

Estar de volta em casa fez Davi refletir. “Quando você vê a sua família e revê todas as coisas que poderia ter perdido, é difícil não pensar. Deus abriu uma porta, uma segunda oportunidade para mim. Estou vivo para continuar meus sonhos, que é terminar a minha casa e ver a minha empresa crescer”, conta.

Consumo de remédios sem eficácia

Desses pacientes com os quais o Metrópoles conversou, todos relataram ter usado, em algum momento, medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid-19. Segundo eles, foram os próprios médicos que receitaram o uso desses remédios, como cloroquina, ivermectina e azitromicina. O resultado, porém, não foi o que esperavam. Com o tempo, perceberam que os fármacos não surtiam efeito e que o quadro de saúde estava piorando.

“Eu comecei a ficar debilitado e já não via mais melhora. A urina começou a ficar muito escura, atacou o rim e comecei a ter febre”, relembra Davi. Com Daniel, não foi diferente. Nos primeiros dias, após o diagnóstico, ele foi orientado a ficar em casa. “Comecei a tomar os medicamentos (azitromicina e ivermectina), mas passei muito mal. Fui ficando pior ainda”, rememora.

Na quinta-feira (4/2), a farmacêutica alemã Merck, responsável pela produção da ivermectina, emitiu um comunicado informando que o medicamento não tem indícios de eficácia contra a doença causada pelo novo coronavírus. Esses remédios estão no cerne do debate atual sobre a propagação de informações falsas e as causas do agravamento da pandemia no Brasil, especialmente em Manaus. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, é investigado pela conduta em relação à crise sanitária do Amazonas.

A situação segue crítica em Manaus. Só na quinta-feira (4/2), foram contabilizadas mais 152 mortes por Covid-19 na cidade. Até então, 506 pacientes foram deslocados para atendimento hospitalar em outros estados. Pazuello chegou a declarar em 29 de janeiro que seria necessário transferir pelo menos 1,5 mil.

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