Hierarquia, medo e silêncio: o assédio sexual nas Forças Armadas

Relatos de vítima revelam abuso de autoridade, tentativas de obstrução da Justiça e subnotificação de casos

Liana Costa
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As investidas começaram no primeiro ano do serviço militar. Na época, o oficial responsável pelo Hospital das Forças Armadas (HFA) chamava a então enfermeira para reuniões particulares. “Ele inventava alguma situação de trabalho, mandava um soldado me chamar e aproveitava quando não tinha ninguém por perto para tentar algo”, lembra Ana*, militar do Exército Brasileiro.

As recusas transformaram o assédio sexual em ameaças e perseguições, avalizadas, às vezes, por mecanismos do próprio regimento da corporação. Eram comuns, relata Ana, intimidações com armas e agressões verbais. Sem ceder, a militar chegou a ser detida por três dias em um quartel, medida justificada como “prisão disciplinar”. “Todo o processo foi uma tortura, e sofro até hoje. Nunca imaginei que isso fosse acontecer comigo, ainda mais no Exército”, conta.

O relato de Ana é um entre vários que descrevem abusos sexuais sofridos por militares dentro das Forças Armadas. Não há, no entanto, estatísticas oficiais que quantifiquem os casos no Brasil. No ambiente militar, denúncias de assédio esbarram na hierarquia castrense, em perseguições de oficiais e no próprio Código Penal Militar (CPM). Em vigor desde 1969, a legislação não tipifica assédio sexual como crime.

Dados obtidos pelo Metrópoles via Lei de Acesso à Informação revelam que, entre 2015 e 2017, o Ministério Público Militar (MPM), órgão responsável pela apuração de crimes previstos no CPM, ofertou 25 denúncias relativas a crimes sexuais. Em apenas uma delas a vítima era outro militar – nos casos restantes, os abusos foram cometidos contra civis.

Dos 25 processos abertos, três relatavam casos de estupro. A maioria (11) acusava militares do crime de pederastia, tipo penal existente apenas no CPM e que proíbe “praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique, ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito à administração militar”. Somente cinco casos resultaram, até o momento, em condenação na Justiça Militar da União (JMU).

“Denúncias feitas por militares simplesmente não vão adiante. O próprio MPM funciona como barreira para que o militar não possa dar prosseguimento a nada que coloque as Forças Armadas como vitrine para a sociedade”, explica o ex-sargento Fernando Alcântara, um dos fundadores do Instituto Ser, única organização não governamental (ONG) brasileira a atender vítimas de abusos em tal âmbito.

Segundo Alcântara, a ONG recebe uma média de três a quatro denúncias mensais envolvendo casos de abusos sexuais sofridos por integrantes das Forças Armadas. “A maioria das vítimas fica calada – ou, quando resolve falar, já é tarde demais, porque os vestígios se foram e elas já não servem mais naqueles locais”, afirma.

O caminho da denúncia
Crimes previstos no Código Penal Militar são investigados pela Polícia Judiciária Militar, corporação composta por integrantes das Forças Armadas. Caso o inquérito aponte indícios de delito, uma denúncia é ofertada pelo MPM à Justiça Militar, que possui, nas primeiras e segundas instâncias, maioria de juízes e ministros originários dos quadros do Exército, Marinha e Aeronáutica.

Na JMU, não raro, os réus são absolvidos por juízes militares sob a alegação de falta de provas materiais. Em um processo de 1996, um capitão médico da Aeronáutica foi acusado de ter assediado duas sargentos locadas numa unidade de saúde das Forças Armadas. No julgamento em primeira instância, apenas a juíza auditora – magistrada civil – votou pela condenação por “atentado violento ao pudor”.

Segundo os juízes castrenses, uma decisão contra o réu seria “pena excessiva que implicaria no desligamento do acusado da Força Aérea, quando já houvera punição disciplinar pelos mesmos fatos”. No Superior Tribunal Militar (STM), a sentença foi reformada. Antes condenado a 8 meses de reclusão, o capitão teve a pena revertida em sursis, espécie de monitoramento periódico do réu durante 2 anos.

Em decisão, o juiz militar responsável por absolver acusado de assédio afirma que “não permitiria que sua esposa se consultasse sozinha com o réu”

Em outra denúncia, de 2010, um sargento acusado de assediar soldado que dormia ao seu lado durante pernoite em um alojamento militar foi absolvido na primeira e na segunda instâncias. Sem outras testemunhas oculares, os magistrados consideraram as provas apresentadas como “insuficientes”.

Perseguição
Em muitos casos, a própria estrutura hierárquica e disciplinar das Forças Armadas garante a subnotificação de casos de abuso. “Se houver uma denúncia, esse ou essa militar pode sofrer perseguição e enfrentar dificuldades na carreira. Eles têm a seguinte norma interna: aquele que chamar atenção vai ter problemas”, explicou uma professora universitária ouvida pelo Metrópoles que pesquisa a vida na caserna e preferiu não se identificar.

No âmbito militar, o assédio sexual é, por vezes, seguido pelo assédio moral, com a aplicação de repreensões, cargas extras de trabalho e até mesmo transferências de unidade. “São procedimentos subliminares e feitos porque as pessoas acreditam na regra acima de tudo. Você segue porque tem de obedecer e ponto final”, explica a segundo-tenente Luciana da Silva Mendes Lucena, 40 anos.

Ela atuou como professora de sociologia no Colégio Militar de Brasília e hoje briga na Justiça pelo assédio moral sofrido enquanto lecionava na instituição.

O ambiente se tornou hostil a ponto de eu adoecer. Carrego hoje o estereótipo de desequilibrada porque denunciei as irregularidades que vi

Luciana da Silva Mendes Lucena, segundo-tenente

Há ainda casos nos quais os próprios militares que denunciam abusos tornam-se réus na JMU. Em 2011, o soldado D. P. K. alegou ter sido rendido por quatro colegas de farda e estuprado dentro do alojamento de um quartel em Santa Maria (RS) enquanto cumpria pena administrativa. Mesmo com mais de 20 testemunhas presentes no momento do crime e um parecer médico atestando a presença de diferentes semens no corpo dele, o inquérito policial militar concluiu que o sexo foi consensual.

Um dos responsáveis pela investigação, general Sérgio Etchegoyen, então comandante da 3ª Divisão Militar do Exército e atual ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, chegou a classificar o episódio como uma “espécie de luta corporal de brincadeira entre os rapazes”.

D. P. K. tornou-se réu na própria acusação e foi denunciado pelo Ministério Público Militar, em conjunto com os outros soldados, pelo crime de pederastia. O processo, que tramitou em segredo de Justiça, resultou em condenação na primeira instância da Justiça Militar.

ONG recebe de três a quatro denúncias por mês sobre abusos sexuais cometidos contra militares

 

Legislação
Especialistas ouvidos pelo Metrópoles apontam uma defasagem entre a legislação prevista para crimes sexuais no Código Penal Brasileiro e no Código Penal Militar. No CPM, por exemplo, a pena máxima para estupro, definido como “constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, é de 8 anos de detenção.

Atualmente, dois projetos que tramitam no Congresso propõem reformas no Código Penal Militar. Um deles, de autoria do deputado Subtenente Gonzaga (PDT-MG), prevê a tipificação de assédio moral com crime.

Em outros países, como Estados Unidos e Israel, as Forças Armadas monitoram e divulgam regularmente relatórios sobre denúncias de abuso sexual feitas por militares. Em 2016, levantamento divulgado pelo Pentágono registrava média de 70 casos de assédios perpetrados por mês no ambiente militar norte-americano.

Metrópoles questionou o Ministério da Defesa sobre orientações e dados relativos a agressões sexuais dentro das Forças Armadas, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.

*Nome fictício, a pedido da entrevistada

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