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Justiça Militar acumula processos de civis condenados por desacato

Levantamento identificou pelo menos 68 civis processados na justiça especializada durante operações das Forças Armadas no Rio de Janeiro

atualizado

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Apesar do anúncio pelo presidente Michel Temer (MDB) de intervenção federal inédita no Rio de Janeiro, a presença de militares em operações no estado não é novidade. Do Rio-92 às Olimpíadas de 2016, integrantes das Forças Armadas foram convocados como alternativa às políticas de segurança pública estaduais. A passagem deles, no entanto, deixou um rastro pouco conhecido no sistema judiciário brasileiro: dezenas de civis respondem, na Justiça Militar da União (JMU), a processos pelos crimes de desacato e desobediência.

De acordo com levantamento feito pelo Metrópoles no banco de dados do Superior Tribunal Militar (STM), ao menos 68 civis foram alvo de processos em auditorias militares por situações de desacato ou desobediência durante operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no Rio de Janeiro. Dos casos analisados, apenas um não resultou em condenação na primeira ou na segunda instância.

A pesquisa levou em consideração operações das Forças Armadas nos complexos do Alemão, da Penha e da Maré entre os anos de 2010 e 2015.

A JMU é um dos ramos do Judiciário brasileiro e é composta pelas auditorias militares, que é a primeira instância, e pelo Superior Tribunal Militar, responsável pelo julgamento de recursos e apelações. Enquanto aquelas são formadas por quatro oficiais militares e um juiz federal, o STM possui 15 ministros, sendo cinco civis e dez originários das Forças Armadas. A primeira instância completamente civil da Justiça Militar é a última, o Supremo Tribunal Federal (STF).

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Os crimes de desacato e desobediência estão previstos nos artigos 299 e 300 do Código Penal Militar (CPM) brasileiro, vigente desde 1969, auge da ditadura militar. A legislação prevê ainda a competência da Justiça Militar para julgar crimes cometidos em tempos de paz por civis contra as instituições militares. A pena para os delitos é semelhante à prevista na Justiça Comum, com detenção de seis meses a dois anos para o primeiro e 15 dias a seis meses para o segundo.

O trâmite nos dois ramos, no entanto, é bem diferente. Na Justiça Comum, os crimes de desobediência e desacato são seguidos por um termo circunstanciado lavrado em delegacia, com o réu respondendo em liberdade. Na Militar, os delitos resultam em prisão em flagrante.

“O civil que comete contra um militar esse tipo de crime de honra acaba sendo preso em flagrante, podendo até mesmo ser levado para o sistema carcerário, que é precário, e fica a depender da decisão do juiz auditor”, explica o coordenador do Núcleo Criminal Milita da Defensoria Pública da União no Rio de Janeiro (DPU-RJ), Jorge Pinho.

Em uma das apelações que tramitaram no STM, um morador do Complexo do Alemão, após ser algemado, permaneceu detido em razão de desacato por mais de dois meses. Apesar de emitido em 2 de julho de 2011, o alvará de soltura foi cumprido apenas em 14 de setembro do mesmo ano.

Em crimes como desacato e desobediência, explica o defensor, as penas são geralmente revertidas em “sursis”, espécie de monitoramento periódico do réu durante dois anos. Ao ser condenado pela Justiça Militar, contudo, um civil, mesmo cumprindo a pena em regime aberto, terá o registro no seu currículo criminal. Apenas depois de cinco anos é possível pedir a reabilitação, ou seja, “limpar a ficha”.

Abordagens
Nos casos levantados pelo Metrópoles, as prisões em virtude de desacato ou desobediência ocorrem, em geral, durante abordagens ou blitz realizadas por militares. “A conduta dos militares, por vezes, busca um rigor maior. Eles entram nesses locais, fazem revistas, exigem documentos e tomam providências que não eram tão comuns para a polícia militar estadual. E os moradores não vislumbravam esse poder de polícia do Exército”, pontua Pinho.

WILTON JUNIOR/ESTADÃO CONTEÚDO
Fuzileiros navais identificam moradores da favela da Vila Kennedy, na zona oeste do Rio de Janeiro, fotografando o documento de identidade e o rosto de cada um durante operação realizada na comunidade.

Não raro, segundo relatos contidos nos processos, a resistência à ação dos militares era acompanhada do uso de equipamentos como spray de pimenta e balas de borracha. “Existe um conjunto de casos onde a decretação da prisão em flagrante de mera arbitrariedade em situações mais corriqueiras possíveis. São comuns os abusos de autoridade”, afirma Guilherme Pontes, pesquisador da ONG Justiça Global.

Uma das principais dificuldades que cercam esse tipo de ocorrência, aponta Pontes, são as provas utilizadas para comprovar o delito. Em muitos casos, restam apenas testemunhos do réu e de militares envolvidos na ação.

Em vídeo postado após o anúncio da intervenção federal no RJ, jornalistas e youtubers negros dão orientações acerca de como sobreviver a uma abordagem de agentes de segurança. “Caso você seja parado e esteja em um ambiente público, por favor, grave com o seu celular. Ele ainda é o melhor e maior registro que a gente pode fazer”, sugere um dos profissionais na publicação. O vídeo já teve mais de 80 mil visualizações no YouTube.

Polêmica
Apesar de prevista em lei, a competência da Justiça Militar para o julgamento de civis é ponto de polêmica entre juristas e membros de cortes superiores. Duas ações a respeito do tema tramitam hoje no STF, a ADFP nº 289 e a ADI nº 5032. Ambas, no entanto, ainda não foram julgadas. Na Câmara dos Deputados, um projeto de lei de autoria do próprio STM, que transfere o julgamento de civis, na primeira instância da JMU para juiz federal de carreira, aguarda votação no plenário.

Você pensar na Justiça Militar julgando civis é fortalecer uma lógica de que existe uma justiça que é privada ao âmbito militar, onde os juízes vão ser militares, o arcabouço legal é militar e que o intuito é proteger os militares

Guilherme Pontes, pesquisador da ONG Justiça Global

Conforme lembra o pesquisador, a competência da JMU já foi questionada por organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. As instituições sustentam que apenas agentes militares da ativa podem ser julgados por cortes militares e somente em crimes militares.

Ampliação
Embora não seja a primeira atuação das Forças Armadas em operações de segurança pública no estado, especialistas apontam que a ação deve ter uma dimensão maior e mais complexa do que as anteriores. Para eles, isso pode aumentar o número de processos na Justiça Militar.

Além de processos de civis acusados de crimes militares, a JMU ganhou, a partir de um projeto de lei assinado em outubro do ano passado por Temer, a competência para julgar crimes dolosos contra a vida praticados por militares quando em atividade operacional. “Em uma operação longa como essa [intervenção], à medida que se aumenta o contato dos militares com a sociedade, podem surgir mais casos de corrução, homicídios e outros crimes praticados por agentes do Exército”, explica o professor do curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ) Michael Mohallem.

STM/Divulgação
STM durante sessão em 2016: tribunal é a segunda instância da Justiça Militar da União

Para o professor, mesmo que a intervenção não se mostre uma política pública de sucesso, ela poderá ser adotada, em ano eleitoral, como caminho de atuação do governo federal. “Basta que a JMU receba casos importantes para ganhar um novo fôlego e um novo sentido de ser”, aponta Mohallem.

Outro lado
O Supremo Tribunal Militar (STM) afirmou, por meio de nota, que os ritos processuais da Justiça Militar da União obedecem aos princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

Segundo a Corte, “as prisões em flagrante que eventualmente possam ocorrer antes da instauração do processo judicial ou as prisões preventivas podem ser questionadas com base em habeas corpus, garantia constitucional para o direito de ir e vir, sendo que o réu na maioria das vezes responde ao processo em liberdade”. O STM reforçou ainda que “a justiça militar não julga militar, mas crimes militares”.

Procurado pelo Metrópoles, o Ministério Público Militar (MPM), órgão responsável por ofertar denúncias à JMU, pontuou que a submissão de civis à Justiça Militar da União está prevista no CPM e “já teve sua constitucionalidade assentada pelo Supremo Tribunal Federal em diversas oportunidades”.

O órgão informou ainda que cabe ao Ministério Público Militar apurar e denunciar eventuais crimes de desobediência e desacato, ainda que cometidos por civis no contexto de operações de GLO, não havendo, nesse mister, nenhuma pecha de abuso ou ilegalidade.

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