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Arautos do Evangelho: MP investiga novas denúncias de abuso sexual

Após reportagem especial do Metrópoles, o papa Francisco nomeia interventor e mais supostas vítimas procuram o Ministério Público

atualizado

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Rafaela Felicciano/Metrópoles
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1 de 1 Arautos-do-Evangelho1 - Foto: Rafaela Felicciano/Metrópoles

O grupo Arautos do Evangelho foi colocado sob tutela do Vaticano e o papa Francisco autorizou a nomeação de um interventor. A decisão foi tomada nesse sábado (28/09/2019), um mês depois de o Metrópoles publicar reportagem especial mostrando a vida de crianças e adolescentes que moram em cinco castelos espalhados pelo país sob os cuidados da comunidade religiosa – que pratica rituais secretos. Pais acusam a instituição de crimes, como abusos físico e psicológico. O Vaticano e o Ministério Público investigam as denúncias.

O comissário nomeado é o cardeal Raymundo Damasceno Assis, arcebispo emérito de Aparecida, que terá o auxílio de dom José Aparecido Gonçalves de Almeida, arcebispo auxiliar de Brasília, e da irmã Marian Ambrosio I.D.P, superiora-geral das Irmãs da Divina Providência. “Depois de ter estudado atentamente as conclusões dos visitadores e obtido a aprovação do Santo Padre, a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica nomeou um comissário pontifício para a associação internacional e as duas sociedades de vida apostólica”, informou a Igreja Católica.

Após a reportagem especial, o Ministério Público de São Paulo recebeu seis novas denúncias contra integrantes dos Arautos do Evangelho, comunidade de pouco mais de 3 mil pessoas no Brasil que nasceu com base em dogmas católicos e está submetida a uma rotina de princípios ultraconservadores. Das recentes acusações instauradas pela comarca do município de Caieiras, quatro são referentes a supostos abusos sexuais que teriam sido praticados pelo monsenhor João Clá.

Tais delações foram protocoladas no Ministério Público de São Paulo (MPSP) após o Metrópoles revelar detalhes da rotina de crianças e adolescentes que vivem em regime de internato em basílicas que lembram castelos.

Há dois anos, vieram a público vídeos em que líderes religiosos dos Arautos do Evangelho supostamente praticavam exorcismo em menores de idade. As gravações mostram o momento em que os encarregados dos rituais davam tapas na cabeça de adolescentes e crianças. As cenas viralizaram. Mas a onda passou e os arautos voltaram ao anonimato, doutrinando jovens a partir de uma rotina que começou a ser questionada por pais e, agora, virou alvo das autoridades.

As imagens de 2017 são, na verdade, frame de uma realidade oculta com sérios indícios de desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei que resguarda os direitos dos menores. Os depoimentos apontam que crianças a partir dos 7 anos podem estar sendo vítimas de alienação parental, lavagem cerebral, assédio sexual, estupro, violência física e psicológica, bullying, violação e controle de correspondência.

A colombiana Maria Paula Pinto Vargas, 22 anos, é uma das cinco pessoas que procuraram o Ministério Público após a publicação da matéria do Metrópoles. À reportagem, a jovem contou que ainda era criança quando teve o primeiro contato com os Arautos, em 2009. Na ocasião, alguns integrantes visitaram sua escola em Bogotá. Um ano depois, com o aval dos pais, ela se mudou para o Brasil e passou a morar em um dos internatos para moças: a Ordem Segunda, ramo feminino dos Arautos.

Maria Paula relata que, inicialmente, se sentia especial por estar ali e pela atenção que recebia do monsenhor João Clá. Por conta disso, custou a entender que algumas atitudes do líder religioso configuravam abuso. Certa vez, após a realização de uma missa, a jovem disse ter sido beijada por João Clá.

“Ele beijou uma menina na bochecha e, em seguida, me deu um na boca. Eu tinha uns 11 ou 12 anos. Acho que ele só não tentou mais vezes porque ficou muito doente”, diz. João Clá teve um derrame cerebral em 2017, época em que ocorreram os vazamentos dos vídeos com supostos exorcismos praticados por ele e seus seguidores.

Igo Estrela/Metrópoles

Canadense também denuncia

Outra denunciante de João Clá é Maria Paula Martinez Gómez, 22 anos, também colombiana. Assim como sua conterrânea, ela conta ter sido forçada a beijar o monsenhor. Tudo acontecia, segundo seu relato, no interior da Ordem Segunda. Por ainda ser uma criança, diz ter demorado a entender que estava sendo vítima de um crime sexual.  “Eu era uma menina pequena e não entendia o que estava acontecendo. Não entendia que isso, com o tempo, se transformaria num trauma, numa vergonha, e em algo que não quero lembrar. “João me deu beijos na boca. Isso ocorreu em duas ou três oportunidades”, recorda-se a jovem.

Também pesa contra o chefe dos Arautos a denúncia de uma canadense, hoje com 27 anos. Ela tinha 12 anos quando diz ter sido abusada por João Clá. Segundo relato da moça, ele chegou a tocá-la nos seus seios e nas nádegas. A estrangeira conseguiu se afastar da congregação em 2014.

Além das denúncias de abusos sexuais, há relatos de maus-tratos, alienação parental e abuso psicológico. Amanda Merotto Lamas Reinders, 25, moradora de Vitória (ES), também ex-Arauto, confirma que os abusos cometidos por João Clá eram acobertados dentro da Ordem Segunda, inclusive por mulheres com posições de destaque na hierarquia.

Amanda não chegou a ser vítima dos supostos crimes, mas procurou o MPSP para contar o que viu nos anos em que ficou enclausurada na congregação. “Isso era comentado com muita discrição lá dentro e era muito mais comum do que se imaginava. Ele nunca fazia isso na frente de padres, de membros da Ordem Primeira, e do ramo masculino, menos ainda diante de alguém da família”, relata.

Ainda há um espanhol que também denunciou esta semana supostos abusos sofridos no período em que passou na congregação.

Delegacia abre investigação

Além da nova frente de investigação aberta pelo Ministério Público paulista, também foi iniciada uma apuração na Delegacia da Criança em Joinville, em Santa Catarina, onde há uma escola mantida pelos Arautos do Evangelho. A delegada da Polícia Civil do estado Tânia Harada confirmou ter instaurado inquérito, mas disse não poder repassar mais informações, pois as averiguações estão no início.

Ao longo de várias semanas, o Metrópoles esteve em quatro capitais que mantêm sedes dos Arautos. Visitou castelos, entrevistou ex-integrantes da comunidade religiosa e familiares ligados aos devotos. A reportagem também teve acesso a uma representação protocolada junto ao MPSP que corre em segredo de Justiça. Os relatos são chocantes.

Os efeitos desse caldo de supostos crimes foram relatados em dezenas de testemunhos aos quais a reportagem teve acesso. Em geral, os jovens que deixaram de conviver com os arautos se queixam de trauma emocional e grande dificuldade de ressocialização, inclusive no ambiente escolar, já que há diferenças sensíveis entre a formação pedagógica curricular padrão e aquela que é oferecida dentro dos internatos.

Até a passagem para os internatos, os pais mantêm um contato próximo com os filhos e os instrutores. Participam dos eventos extracurriculares, reuniões, orações e recebem visitas dos religiosos em suas casas, em uma relação saudável, que cria uma sensação de confiança.

Os problemas começam a acontecer, segundo os relatos de pais e de ex-internos, quando é autorizada a ida aos castelos. Só na unidade masculina de Caieiras, na Serra da Cantareira, estão confinados 150 garotos. Há ainda a casa das meninas, chamada Monte Carmelo. As sedes ficam a quatro quilômetros uma da outra. Depois de reclusas, as crianças e os jovens passam a ter pouco ou nenhum contato com o mundo externo.

Órgãos sexuais

Os arautos carregam um livreto chamado Preces, que reúne orações para serem lidas durante o dia e até instrução para tomar banho e lavar as mãos. Primeiro, deve-se ensaboar a cabeça e o rosto. Depois, o pescoço e o tronco, seguindo para a parte da frente e, só então, as costas. Sempre iniciando pelo membro direito, depois o esquerdo. Os adeptos conferem hierarquias às partes do corpo.

Os órgãos sexuais são tabus. Nunca devem aparecer em conversas, nem mesmo no material pedagógico, segundo os relatos de ex-arautos. A todos é recomendado que não observem qualquer corpo nu, nem o próprio, muito menos os dos colegas. Televisões são proibidas, as músicas tocadas são apenas cantos religiosos e composições clássicas. Eles devem participar de ao menos uma missa diariamente.

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