• Mirelle Pinheiro
    Mirelle Pinheiro
  • David Ágape
    David Ágape

23/08/2019 5:30

Vestidos com hábitos em estilo medieval, correntes na cintura e botas de cavalaria, homens e mulheres apresentam movimentos minuciosamente ensaiados, semelhantes aos executados por militares. Constroem basílicas e moram em palácios que lembram castelos europeus. Eles seguem à risca um manual de costumes, estudos, orações. Devem manter, também, disciplina de pensamento. São os Arautos do Evangelho, comunidade de pouco mais de 3 mil pessoas no Brasil que nasceu com base em dogmas católicos e está submetida a uma rotina de princípios ultraconservadores. Esse grupo também abriga crianças e jovens que vivem em regime de internato.

Os Arautos do Evangelho constituem desde 2001 uma associação privada de padres de direito pontifício, ou seja, religiosos que ostentam um estatuto aprovado pelo Vaticano, reconhecidos, portanto, pela Igreja Católica. Em 2017, o grupo entrou na mira da Santa Sé e, desde o ano passado, o Ministério Público investiga as atividades dessa organização.

Ao longo das últimas semanas, o Metrópoles esteve em quatro capitais que mantêm sedes dos Arautos. Visitou castelos, entrevistou ex-integrantes e familiares ligados aos devotos. A reportagem também teve acesso a uma representação protocolada junto ao Ministério Público de São Paulo (MPSP) que corre em segredo de Justiça. Os relatos são chocantes.

Há dois anos, vieram a público vídeos em que líderes religiosos dos Arautos do Evangelho supostamente praticavam exorcismo em menores de idade. As gravações mostram o momento em que os encarregados dos rituais davam tapas na cabeça de adolescentes e crianças. As cenas viralizaram. Mas a onda passou e os arautos voltaram ao anonimato, doutrinando jovens a partir de uma rotina que começou a ser questionada por pais e, agora, virou alvo das autoridades.

As imagens de 2017 são, na verdade, um frame de uma realidade oculta com sérios indícios de desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei que resguarda os direitos dos menores.

Os depoimentos apontam que crianças a partir dos 7 anos podem estar sendo vítimas de alienação parental, lavagem cerebral, assédio sexual, estupro, violência física e psicológica, bullying, violação e controle de correspondência.

Os efeitos deste caldo de supostos crimes foram relatados em dezenas de testemunhos aos quais a reportagem teve acesso. Em geral, os jovens que deixaram de conviver com os arautos se queixam de trauma emocional e grande dificuldade de ressocialização, inclusive no ambiente escolar, já que há diferenças sensíveis entre a formação pedagógica curricular padrão e aquela que é oferecida dentro dos internatos.

capítulo I

Como as crianças vão parar nos castelos

Tudo começa com uma abordagem de representantes dos Arautos dos Evangelhos a pais e estudantes, geralmente recrutados em igrejas e escolas. Dentro dessa comunidade religiosa, os integrantes são treinados a apresentar um projeto social que inclui atividades pedagógicas e lúdicas, e a escolher um tipo determinado de perfil. Embora apresentem a proposta em turmas escolares sem fazer distinção, na hora da seleção – que, supostamente, se dá por sorteio – escolhem os estudantes que atendam aos pré-requisitos preferenciais da instituição religiosa. Geralmente, os indicados são crianças brancas de classe média ou baixa.

Uma vez selecionados, os jovens são convidados a participar de tarefas extracurriculares em uma das sedes do movimento, que são construções convencionais. Em Brasília, por exemplo, o espaço de recreação funciona na QI 25 do Lago Sul, bairro nobre da capital federal. Depois de quatro semanas frequentando assiduamente o lugar, alguns ganham bolsa para estudar na escola mantida pelos Arautos do Evangelho. No caso do Distrito Federal, a instituição de ensino fica nos fundos de um campo de futebol de grama sintética na 2ª Avenida do Núcleo Bandeirante.

Em dezembro de 2018, a escola conseguiu do Governo do Distrito Federal (GDF) autorização para funcionar. De acordo com o Diário Oficial do DF, o registro é “em caráter excepcional e a título precário”. O colégio recebe crianças do 1° ao 9° ano do Ensino Fundamental. A abordagem aos menores no Distrito Federal foi alvo de denúncia de pais à Secretaria de Educação do GDF. A pasta apura o caso (leia mais abaixo).

Depois das etapas de recreação e do convívio escolar, já numa terceira fase, alguns dos estudantes que se adaptaram à vivência com os arautos são chamados a morar em um dos cinco castelos construídos pelo grupo religioso no Brasil. Desses, dois ficam na Serra da Cantareira, em São Paulo. Há ainda unidades em Ubatuba (SP), Embu das Artes (SP) e Maringá (PR). A última sede inaugurada pelos Arautos do Evangelho foi em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro.

Clique nos ícones em vermelho para saber onde estão localizados os castelos ao redor do mundo:

Até a passagem para os internatos, os pais mantêm um contato próximo com os filhos e os instrutores. Participam dos eventos extracurriculares, reuniões, orações e recebem visitas dos religiosos em suas casas, em uma relação saudável, que cria uma sensação de confiança.

Os problemas começam a acontecer, segundo os relatos de pais e de ex-internos, quando é autorizada a ida aos castelos. Só na unidade masculina de Caieiras, na Serra da Cantareira, estão confinados 150 garotos. Há ainda a casa das meninas, chamada Monte Carmelo. As sedes ficam a quatro quilômetros uma da outra. Depois de reclusas, as crianças e os jovens passam a ter pouco ou nenhum contato com o mundo externo.

Rafaela Felicciano/Metrópoles

Depois de reclusas, as crianças e os jovens passam a ter pouco ou nenhum contato com o mundo externo

A reportagem do Metrópoles esteve no internato masculino, onde é possível fazer visita guiada pela Basílica Nossa Senhora do Rosário, que faz parte do complexo. Na casa onde estão acomodadas as meninas, a entrada de visitantes restringe-se às missas de domingo.

O que acontece dentro dos castelos

A vida dos religiosos dentro dos mosteiros é orientada pelos toques dos sinos. Há um horário determinado para acordar, fazer orações e dormir. Tudo está regido por um rigoroso manual de conduta chamado de Ordo – Usos e Costumes. Os que não seguem as normas à risca sofrem penalidades, como ficar horas de joelho ou dias em completo silêncio.

Atualizada com frequência, a publicação conta uma breve história dos Arautos do Evangelho e fornece instruções que vão desde como fazer o sinal da cruz na oração até o modo de dobrar um guardanapo, bem como as maneiras corretas de se alimentar e de se vestir. Todas as recomendações são acompanhadas de citações de João Scognamiglio Clá Dias, tratado na congregação por monsenhor. Aos 80 anos, recém-completados em 15 de agosto, o paulista é o líder máximo dos Arautos do Evangelho, entidade que, além do Brasil, tem células em 78 outros países.

Clá Dias bebeu na fonte de Plinio Corrêa de Oliveira, o fundador da Tradição, Família e Propriedade (TFP). Trata-se de uma organização civil católica conservadora criada em 1960. Sua característica política na época da ditadura era o anticomunismo (leia mais abaixo).

Ao soar dos sinos

Logo pela manhã, após o soar dos sinos, os internos recebem orientação para retirar a coberta com a mão direita ou esquerda (dependendo do lado em que a cama esteja). Na sequência, de joelhos, fazem a primeira oração diária.

Os arautos carregam um livreto chamado Preces, que reúne orações para serem lidas durante o dia. Têm instrução até para tomar banho e lavar as mãos. Primeiro, deve-se ensaboar a cabeça e o rosto. Depois, o pescoço e o tronco, seguindo para a parte da frente e, só então, as costas. Sempre iniciando pelo membro direito, depois o esquerdo. Os adeptos conferem hierarquias às partes do corpo.

Os órgãos sexuais são tabus. Nunca devem aparecer em conversas, nem mesmo no material pedagógico, segundo os relatos de ex-arautos. A todos é recomendado que não observem qualquer corpo nu, nem o próprio, muito menos os dos colegas. Televisões são proibidas, as músicas tocadas são apenas cantos religiosos e composições clássicas. Eles devem participar de ao menos uma missa diariamente.

As refeições são preparadas por empresas terceirizadas ou por arautos que atuam apenas para este fim, servir. Eles são chamados de intendentes. Não é permitido comer fora do horário nem nas dependências da copa e da cozinha.

Eventuais saídas dos templos também são sinalizadas por meio de toques dos sinos. Após o alerta, os jovens têm um tempo para entrar no carro – caso contrário, são deixados na sede. O comportamento adotado dentro do veículo é minuciosamente relatado no Ordo.

A regra é evitar distrações. Não se deve olhar pela janela. Por isso, recomenda-se sempre levar um livro com preces ou fotos. Ao descerem, os arautos precisam caminhar com a cabeça e os ombros erguidos, sem balançar os braços de forma exagerada, não falar alto e evitar chamar atenção “mexendo no cabelo ou dando risadas”.

capítulo II

Lavagem cerebral e a distância da família

Rafaela Felicciano/Metrópoles
Imagem - Capítulo 2

As entrevistas de ex-internos e de seus familiares à reportagem e os depoimentos prestados ao Ministério Público guardam uma característica em comum: descrevem duas etapas muito distintas da experiência do convívio com os Arautos do Evangelho. Como no roteiro de um filme, a primeira fase lembra um conto de fadas. Tudo gira em torno de um ambiente de beleza e de harmonia. Crianças e jovens, muitos deles de origem humilde, encantam-se com a chance de morar em um castelo rodeado por jardins floridos, na companhia de colegas da mesma idade, comendo pizza e chocolate nas refeições. Usam uniformes medievais, têm acesso a instrumentos e praticam artes marciais. Parece um sonho.

O acesso a uma rotina que muitos pais não podem oferecer a seus filhos tem um preço que não é cobrado em dinheiro. Mas, depois de um tempo, torna-se um drama para muitas famílias que praticamente perdem o contato com seus filhos.

É quando a narrativa entra numa segunda etapa, desta vez com características de filme de terror. Em seus testemunhos, jovens contam que passam por uma “reprogramação” para se desapegarem de seus laços familiares. Os internos são orientados e encorajados a cortar o vínculo com os parentes. A eles é dito e repetido ostensivamente que seus verdadeiros pais são João Clá, o fundador do movimento, e Lucília Ribeiro dos Santos Corrêa de Oliveira. A mulher é a mãe de Plínio Corrêa de Oliveira, o homem que inaugurou a ordem Tradição Família e Propriedade, o principal pilar dos Arautos do Evangelho. Os irmãos são aqueles que dividem a vida nos castelos.

Rafaela Felicciano/Metrópoles

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A transição é gradual, mas começa a ocorrer tão logo os jovens são levados ao internato. Com um dia a dia repleto de funções e atividades, sobra pouquíssimo tempo para o contato com familiares. Dentro dos castelos, os estudantes não podem usar telefones celulares. A única forma de se comunicarem é por meio de telefone fixo ou de visitas pessoais. Como o tempo é curto e são muitos os jovens, as ligações ocorrem poucas vezes por mês e se tornam cada vez mais raras.

Encantos e desencantos

Uma vida supostamente cercada de encantos atraiu L. S. para os Arautos. Hoje com 18 anos, ela conta que tinha apenas 10 quando passou a morar com o grupo. Sonhava em ser astronauta e desbravar as estrelas. “Minha vida mudou quando pessoas que moravam em castelos e vestiam roupas bonitas vieram até mim dizer que, entre milhões de pessoas no mundo, Nossa Senhora havia me escolhido para ser uma de suas filhas prediletas”, conta a jovem. Ela recebeu a reportagem do Metrópoles em sua casa, que fica em Taboão da Serra, na Região Metropolitana de São Paulo.

Rafaela Felicciano/Metrópoles

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A jovem lembra que sempre foi fã de contos infantis, assistia aos desenhos da Disney, via novelas mexicanas infantis que apresentavam internatos como um lugar divertido, com a possibilidade de fazer vários amigos e de brincar. L. S. era amante dos livros e tinha o sonho de estudar em colégio particular. “Eles me prometeram um castelo, a melhor escola e uma biblioteca com chão e mesa de mármore, os livros eram de capa dura e letras douradas. Estava no conto de fadas em que sempre quis estar”, conta.

Ao longo dos anos, a convivência com as irmãs de hábito foi ficando cada vez mais difícil. Ela morou no castelo da Serra da Cantareira durante cinco anos. Distante da família, L. S. mudou seu comportamento. “A realidade foi bem cruel comigo. Perdi o que eu tinha de melhor, a minha alegria. Era sempre assim: ‘Correr na igreja é feio, não pode falar, senta reto, não coma a unha, não questione, não conte nada para sua mãe, não reclame, não pode brincar, seja adulta, adore o João Clá, beije a mão do padre, minta para o seu pai, não fale com o mendigo, não olhe para o lado, repita, não pense, senão você vai para o inferno’.”

Rafaela Felicciano/Metrópoles

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A vida regida pelo Ordo (o manual de costumes e condutas dos Arautos do Evangelho) foi moldando L. S. de uma forma inesperada. Ela descreve que os horários eram preenchidos com muitas atividades. Diferentemente do que ocorria na primeira fase, fora do castelo, a rotina do internato não abria espaço para hobbies. A moça diz que as normas têm a função de “padronizar mentes e criar robôs”. A partir do momento em que começou a questionar o motivo de todas as regras, a jovem passou a ter problemas. E acabou submetida a duas sessões de exorcismo.

Diziam que eu estava possuída por espíritos. Tive que tomar azeite e fui levada a um padre. Todos ficaram esperando que algo ocorresse. Uma encarregada brigou comigo porque nada aconteceu de diferente. Depois, comecei a passar mal por causa da ingestão de muito azeite. Acharam, então, que enfim o mal estava se manifestando, e me submeteram a outra sessão de exorcismo

L. S., ex-arauto

L. S. começou a ter problemas psicológicos e não conseguia mais falar. Diante do comportamento da jovem, os arautos decidiram enviá-la de volta para casa.

O processo de ressocialização não foi simples. Apesar de ter 15 anos à época, até atividades mais corriqueiras, como atravessar uma rua, eram um desafio diante de todo o tempo de isolamento. A família, então, decidiu sair de São Paulo e ir para o interior do Nordeste, até que a filha pudesse voltar a se comunicar melhor com as pessoas e se readaptar.

Perto dos Arautos e longe dos pais

Rafaela Felicciano/Metrópoles

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O quarto com paredes da cor lilás, os ursos de pelúcia em cima da cama, as pedras coloridas na estante e a coleção de conchinhas na cômoda apresentam um pouco da personalidade de B. P., a filha de 21 anos da contabilista N. P., de 49. A mãe relata que a jovem amava passear, ler, ir à praia. “Esbanjava alegria nessa época passada”, conta a mulher, que mora em um bairro de classe média no município de Osasco (SP).

A rotina da família, no entanto, mudou quando B. P., aos 11 anos, começou a frequentar as aulas no instituto dos Arautos do Evangelho em São Paulo. A mãe diz que, no início, a convivência com os religiosos era constante. Havia reuniões, orações e jantares com fartura. “Após seis meses frequentando o projeto Futuro e Vida, minha filha ganhou uma bolsa de estudos. Eu me lembro de chorar muito ao arrumar as coisinhas dela na mala”, recorda-se a contabilista.

Depois do primeiro ano de internato, a filha de N. P. iniciou as atividades também nos fins de semana e nas férias. As visitas aos pais se tornaram escassas. “Ela nos dizia que precisava se dedicar à vida religiosa, mas eu te pergunto: como é possível decidir ser freira aos 11 anos?”, questiona a mãe. Em 2010, a menina escreveu uma carta em que falava sobre sua vocação.

A jovem, que adorava maquiagens e histórias infantis, foi se transformando em uma pessoa mais fria e cheia de segredos. Os objetos de desejo de uma pré-adolescente foram, aos poucos, sendo estocados em caixas guardadas no quarto. “Ela não deixa de usar o hábito e as botas, mesmo quando está em casa conosco. Não conta o que acontece lá. Evita ir à missa ou fazer oração quando está com a gente. Esses comportamentos foram nos deixando preocupados sobre o que de fato ela está aprendendo nesse lugar”, desabafou.

Quando B. P. completou 18 anos, a mãe dela recebeu uma ligação da filha que a deixou sem reação. “Ela me disse que, maior de idade, a gente não iria mais interferir nas escolhas dela. Eu nunca parei para pensar nessa questão dos 18 anos porque nunca achei que com essa idade o pai perderia o direito sobre o filho. Sempre respeitei o caminho que ela escolheu seguir, mas definitivamente não estava disposta a abrir mão de tê-la por perto”, disse a mãe. Emocionada, afirmou ao Metrópoles que ainda espera pelo retorno da filha.

Rafaela Felicciano/Metrópoles
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Em certa ocasião, as divergências familiares em torno dos Arautos do Evangelho virou caso de polícia. Durante uma visita que B. P. fez aos pais, a mãe aproveitou para ter uma conversa séria com a filha. Queria que a jovem se matriculasse em outra escola e deixasse o internato. “Ela foi para o banheiro e mandou uma mensagem para as irmãs, dizendo que estava presa dentro de casa. De repente, a Polícia Federal bateu na minha porta, e o agente disse que tinha um boletim de ocorrência por cárcere privado. Meu mundo desmoronou”, afirmou a mulher.

A família seguiu para a delegacia dentro da viatura. O delegado explicou que a jovem havia denunciado e prestado depoimento contra os pais, alegando que estava sendo obrigada a ficar em casa. O caso foi registrado e, posteriormente, arquivado. “Como uma pessoa religiosa faz isso com os próprios pais? Como uma instituição que se diz religiosa tem coragem de ligar para a polícia nessa situação? Por que não falaram para ela conversar comigo?”

As lembranças que a mãe prefere guardar da filha, hoje com 21 anos, são memórias da infância. Recorda-se da criança que se divertia procurando conchinhas na praia, que tinha como um dos acessórios preferidos uma bolsa branca e que gostava muito de ler e escrever. As memórias permanecem naquele mesmo quarto. As roupas de cama com temas infantis são trocadas semanalmente. As roupinhas de uma criança de 11 anos ainda enchem as gavetas.

Sonho de princesa

As roupas em estilo medieval e a possibilidade de viver em um castelo fizeram com que A. B., aos 7 anos, sonhasse fazer parte dos Arautos. Ela ficou encantada ao conhecer uma das integrantes da ordem durante visita ao Santuário de Aparecida, em São Paulo. Após frequentar as aulas, escreveu carta endereçada ao fundador, João Clá, pedindo uma bolsa na escola. “Fiquei lá entre 2015 e 2018. No começo era tudo novo, encantador. Eu sentia algo diferente, sentia que lá era o meu lugar”, contou a jovem, que ao lado da mãe – R. M., 41 anos – recebeu a reportagem na casa de uma vizinha em Osasco (SP).

Rafaela Felicciano/Metrópoles
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Assim como nos demais casos relatados, houve a ruptura de convivência com a família. De acordo com a menina, hoje com 14 anos, quem mostrava apego e dependência em relação aos pais biológicos era alvo de críticas dentro da escola. A família era chamada de FMR – Fonte da Minha Revolução. E quem quisesse seguir o caminho da santidade deveria evitar contato com os “revolucionários”, incluindo os próprios pais. A mãe conta que impediu a filha de receber o hábito. “Ela não tinha a menor condição de escolher virar freira naquela idade. Percebi que, durante as visitas, ela ficava distante, evitava ficar perto de mim. Sou nordestina, e a nossa família sempre foi muito próxima. Gostamos de abraçar, beijar, eu a chamo de meu bebê até hoje. Não queria que essa relação mudasse”, contou.

Em 2018, a relação desgastada entre a mãe de A. B. e os dirigentes dos Arautos acabou por resultar no retorno da adolescente para a família. “Hoje, eu tenho uma vida normal, fiz amigos e descobri quem eu sou, não era nada daquilo que um dia me fizeram acreditar”, disse a jovem.

capítulo III

A morte misteriosa da jovem que virou “santa”

Josemar Gonçalves/Especial para o Metrópoles
Imagem - Capítulo 3

Um dos casos mais dramáticos passados dentro de um dos castelos que reúnem os Arautos do Evangelho ocorreu há três anos. Uma jovem foi encontrada morta depois de cair da janela de seus aposentos. A polícia trabalha com a hipótese de suicídio, a família da moça não aceita a versão, e os arautos tratam o episódio como um ato de santidade. Desde o incidente, a estudante é venerada na comunidade como santa. Há pingentes e relíquias com o rosto dela.

Pela primeira vez desde a morte trágica da filha, a mãe dela falou sobre o assunto em depoimento à jornalista do Metrópoles Nelza Cristina.

O relato doloroso aborda três anos de saudade e expõe perguntas que ainda estão sem resposta. A enfermeira paraibana Zélia Salvador de Assis, 62, não aceita até hoje as explicações para a morte da filha, Lívia Natsue Salvador Uchida, então com 26 anos, em uma das edificações na sede da associação Arautos do Evangelho na Serra da Cantareira (SP), ocorrida em 27 de julho de 2016. No dia 5 de setembro, a jovem completaria 27 anos.

A explicação dada à época é que Lívia teria caído da janela de seu dormitório, no quarto andar, enquanto fazia uma faxina no local. A mãe não acredita nessa versão. Assim que chegou a São Paulo, após receber a notícia, esteve no recinto.

Havia um balde com água limpa, um pano limpo e não tinha qualquer marca de sapato no mármore da janela

Zélia de Assis, mãe de Lívia

Aos poucos, ela foi reunindo informações que só reforçaram a suspeita de que havia algo errado. A filha teria morrido pela manhã, mas o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) só foi chamado por volta de 12h30 e a polícia, acionada às 17h. As botas da jovem foram retiradas sem qualquer explicação. Zélia afirma que nunca teve acesso aos registros das câmeras instaladas no local.

A morte de Lívia foi comunicada a um parente. Ao saber da notícia, mãe e filho, cerca de um ano e meio mais velho que a jovem, viajaram imediatamente para São Paulo. “Embarcamos de madrugada. Fui rezando para que aquilo não fosse verdade”, conta.

No local, segundo a mulher, um policial informou que tudo não passava de um acidente e que ela devia se conformar. Mas, depois, um delegado de Caieiras ponderou que muita coisa ainda deveria ser explicada sobre o caso. Foi quando Zélia resolveu reunir suas economias e contratar dois advogados.

A paraibana, porém, não teve sorte na iniciativa. Um dos advogados ficou apenas três meses, e o outro deixou o caso após um ano. A ocorrência acabou arquivada por indício de suicídio.

A mãe não desistiu e diz que ainda vai tentar reabrir o caso. “Aquela menina era tão doce e talentosa, pintava, cantava, tocava sax, isso não podia acabar assim. Era de uma meiguice sem igual”, relata a mãe, saudosa.

Josemar Gonçalves/Especial para o Metrópoles
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Sobre a santificação da moça pelos Arautos do Evangelho, a enfermeira desconfia que a atitude foi no sentido de mascarar as causas da morte. “Acho que eles fizeram isso para tentar encobrir alguma coisa”, diz a mãe.

Dilacerada com a dor da perda de uma filha, Zélia ainda teve de ouvir versões fantasiosas para a tragédia. Em uma delas, a moça teria se jogado atendendo um pedido de Jesus.

Quando esteve em São Paulo para a missa de um ano da morte de Lívia, Zélia ficou espantada ao ver que todos parabenizavam ela e o ex-marido por serem “pais de uma santa”. “Eu fiquei espantada, sem saber como reagir. Quando dizia que preferia minha filha viva, eles afirmavam que isso era uma blasfêmia, que eu deveria ficar feliz em ter uma filha santa”, conta.

Rafaela Felicciano/Metrópoles
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Na sala de seu apartamento, em João Pessoa (PB), Zélia relata os acontecimentos. No local, ela mantém um quadro com uma imagem de Jesus, muitas plantas, fotos e algumas mensagens positivas nas paredes. Questionada se perdeu a fé, ela diz que não, mas afirma não seguir qualquer religião.

Em meio a fotos de Lívia espalhadas pela mesa, Zélia lembra que a jovem foi levada para os Arautos do Evangelho por iniciativa do pai, um dentista filho de japoneses. “Eu conheci meu ex-marido em Rondônia, quando fui visitar um irmão. Nos casamos e tivemos três anos e meio de um relacionamento maravilhoso”, relata.

Josemar Gonçalves/Especial para o Metrópoles
Foto

Zélia não sabia que na adolescência seu marido havia feito parte da comunidade dos arautos. Já morando em Lins, interior de São Paulo, o homem passou a ficar sob a influência de um irmão, integrante da comunidade. Acabou voltando a fazer parte do movimento e tentou levar os dois filhos junto. A menina acompanhou o pai. Mas, depois de um tempo, o garoto mais velho desistiu da rotina nos castelos.

“Viajei um período, e meu cunhado teria ficado trancado com meu ex-marido durante uma semana. Foi quando ele decidiu voltar para os Arautos do Evangelho”, conta Zélia. A partir daí, o casamento dela começou a enfrentar desgaste.

O pai levava os filhos aos fins de semana para as atividades da associação. Zélia conta ter tentado se integrar, mas não conseguiu. “Aquela adoração ao líder deles era insuportável”, relata. O casal separou-se pela primeira vez quando Lívia tinha 7 anos. Zélia, então, mudou-se com a crianças para a Paraíba, seu estado de origem. Pouco tempo depois, entretanto, foi convencida pelo ex a voltar para São Paulo. Quando chegou à capital paulista, descobriu que ele não havia se afastado dos Arautos do Evangelho.

Os filhos continuaram frequentando a associação nos fins de semana. Eram submetidos a um treinamento duro, “comparado ao militar”. A menina parecia adaptada, mas o menino não.

Quando não faziam algo certo, batiam nas mãos deles, os humilhavam. Eles não podiam ver TV, saíam do colégio direto para casa. Meu filho passou a questionar aquilo tudo, os trajes e exercícios pesados

Zélia de Assis, mãe de Lívia

Um dia, quando os filhos estavam com 12 e 13 anos e meio, o menino chegou em casa gritando. “Ele pedia para que eu o tirasse daquele inferno. Foi quando resolvi sair de casa com as crianças. Ainda tentei por 15 anos, entre idas e vindas, manter o casamento, mesmo com todas as dificuldades, mas não dava mais”, explica Zélia.

Após o pedido de socorro do filho, a enfermeira aposentada conta que providenciou a mudança imediatamente. “Era um sábado. O pessoal do caminhão chegou e recolheu tudo, mas, na hora de sair, minha filha se trancou no quarto. Por mais que eu insistisse, ela não saía de lá. Decidi ir e salvar pelo menos um dos dois. Não havia nada mais que eu pudesse fazer naquele momento”, diz, emocionada.

Reprodução

Foto

Durante um tempo, Zélia costumava visitar a filha, mas os encontros sempre eram acompanhados pelo ex-marido. “Minha filha me disse, com aquele jeito meigo dela, que eu ficasse tranquila, pois ela iria ficar com o pai para cuidar dele”, relembra.

A filha de Zélia chegou a morar no castelo dos Arautos do Evangelho por 14 anos. “Ela andava com aquelas roupas pesadas, usava botas. Quando ia a São Paulo, eu sempre comprava roupas para ela. Mas, quando Lívia regressava, eles colocavam os uniformes de volta”, relata.

Reprodução
Fac

Atualmente, Zélia participa de um grupo de pessoas que têm ou tiveram filhos ou parentes na organização religiosa. “Minha meta hoje é ajudar quantos jovens eu puder a saírem de lá”, afirma.

Zélia teria feito algo diferente? “Sim. Eu teria insistido mais para tirá-la de lá. Teria respeitado menos a vontade dela, seu livre-arbítrio. E é isso que aconselho hoje aos pais que me procuram em busca de ajuda. Insistam, insistam muito, mesmo que seus filhos fiquem com raiva de vocês. Na associação, eles não gostam quando há muita interferência e podem acabar mandando os jovens de volta para casa”, aconselha a mulher.

capítulo IV

Fui abusado, mas me convenceram de que a culpa era minha

Rafaela Felicciano/Metrópoles
Imagem - Capítulo 4

A partir do relato de alguns ex-integrantes dos Arautos do Evangelho, o Metrópoles localizou um homem que afirma ter sido vítima de estupro quando era menor de idade e na época em que morava sob o teto da comunidade religiosa. Sob a condição de anonimato, ele contou uma série de abusos que teriam ocorrido nos três endereços por onde passou quando participava da associação.

O vídeo a seguir, gravado pela repórter fotográfica Rafaela Felicciano, foi feito no Paraná, onde o ex-arauto mora atualmente. O homem nunca denunciou o caso à polícia. Conta que, durante anos, conviveu com a culpa e a vergonha de achar que era o responsável pela violência iniciada, segundo afirma, aos 13 anos.

Ele deixou a congregação depois que começaram os rumores sobre as relações sexuais. Gay assumido, o homem diz que a terapia e o retorno à convivência fora do ambiente dos arautos o ajudaram a superar o trauma passado.

capítulo V

Quem é Clá Dias, o líder dos Arautos

Divulgação
Imagem - Capítulo 5

João Scognamiglio Clá Dias é chamado por seus seguidores de “Monsenhor”, “Papito” ou “JCD”. Ele nasceu em 1939, na cidade de São Paulo. É o fundador dos Arautos do Evangelho. Durante décadas integrou a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), uma organização civil de inspiração católica ultraconservadora. A TFP combateu o comunismo no Brasil e se espalhou pelo mundo sob a liderança intelectual do leigo Plinio Corrêa de Oliveira.

Se tornou o deputado mais votado na Constituinte de 1934 pela Liga Eleitoral Católica. Durante a ditadura, a influência à direita ganhou projeção em defesa dos governos militares. O poder político alimentou sua liderança religiosa.

João Clá Dias tornou-se um dos seguidores mais próximos de Plinio e era chamado por ele de “discípulo perfeito”.

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O encontro dos dois foi ao acaso. Clá Dias frequentava aulas do historiador católico Orlando Fedeli, que o convidou certa vez para ir a uma das reuniões da TFP. Lá conheceu Plinio, de quem logo se aproximou.

Em site na internet que leva seu nome há uma biografia com a trajetória acadêmica do líder religioso. Segundo o texto, Clá Dias formou-se em direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo. Mas sua carreira voltou-se para as questões religiosas a partir do convívio com dr. Plinio.

Os dois compartilhavam com fervor a tese de que existem apenas duas correntes históricas no mundo: a revolucionária (protestantismo, Revolução Francesa, comunismo, liberalismo) e a católica. Esse grupo, do qual ambos faziam parte, passou a ser malvisto entre a cúpula da Igreja Católica, principalmente depois do Concílio Vaticano II, que abriu a Igreja para a modernidade, rejeitada pelos princípios da TFP.

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Depois da morte de Plinio Corrêa, em 1995, houve um grande racha no grupo. Uma ala, que era liderada por João Clá Dias, pretendia se dedicar mais à atividade religiosa. Já a outra priorizava as práticas políticas.

Após um longo embate judicial, Clá Dias obteve o direito de continuar a usar a marca TFP. No entanto, optou por criar um novo grupo. Em 1999, ele fundou os Arautos do Evangelho. Seis anos depois, ordenou-se padre, em 15 de junho de 2005. Depois, logrou o título de monsenhor. Em 2001, o grupo conseguiu o reconhecimento do papa João Paulo II.

Logo após os vazamentos dos vídeos de supostos exorcismos em 2017, João Clá Dias renunciou ao comando dos Arautos do Evangelho. Oficialmente, quem o substituiu no posto foi o padre Alex Barbosa de Brito. Mas, na prática, ele ainda exerce liderança absoluta junto aos arautos.

Adoração a fios de cabelo e unhas do monsenhor

Material cedido ao Metrópoles

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O sentimento que os arautos demonstram pelo líder Clá Dias é de adoração. Ao ingressarem, as crianças são orientadas a se consagrar como “escravas” do religioso e passam a receber como recompensa objetos tratados como relíquias. São retalhos de roupas e partes do corpo dele, como fios de cabelo e pedaços de unhas. Até mesmo a água usada para lavar as vestes do monsenhor é tratada como se sagrada fosse e usada em cerimônias para “expurgar demônios”.

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capítulo VI

De onde vem o dinheiro que financia os Arautos

Material Cedido Metrópoles
Imagem - Capítulo 6

A primeira organização ligada aos Arautos do Evangelho foi fundada por Clá Dias, em setembro de 1997. Era a chamada Associação Cultural Nossa Senhora de Fátima (ACNSF). Outras três instituições foram registradas nos anos seguintes: Associação Brasileira Arautos do Evangelho (AEB), iniciada em agosto de 2000; Associação Católica Rainha das Virgens (ACRV), de março de 2007; e Sociedade Clerical Virgo Flos Carmeli (SCVFC), que passou a existir em novembro de 2007. Cada uma delas possui uma centena de filiais espalhadas por todo o país.

Em todas as referências às associações sem fins lucrativos, evita-se o vínculo com os Arautos do Evangelho, assim como as menções a Clá Dias, Plinio ou sua mãe, Lucília. De acordo com ex-integrantes da organização religiosa, a ideia é afastar a imagem polêmica dos Arautos e da TFP das campanhas de arrecadação. O maior argumento usado pelos integrantes que se dedicam à missão de reunir doações é que o dinheiro se destina a entidades devotas de Nossa Senhora de Fátima.

Segundo um ex-integrante da comunidade religiosa que trabalhou na área financeira da instituição e conversou com o Metrópoles sob a condição de anonimato, a renda mensal dos Arautos em 2015 era de R$ 11 milhões.

O dinheiro arrecadado vem de católicos do Brasil e de outros países, como Portugal, Espanha e Itália. Esses recursos viabilizaram a construção dos castelos. Os valores são obtidos por meio de doações via correio e através de débito automático em conta. No site Reclame Aqui há dezenas de queixas de pessoas que pleiteiam o cancelamento de cobranças feitas por entidades ligadas ao grupo.

A abordagem dos arrecadadores é feita pessoalmente e, em geral, eles vão em duplas. Na primeira visita, os arautos levam o oratório de Nossa Senhora de Fátima.

Rafaela Felicciano/Metrópoles

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De acordo com um ex-integrante da congregação, a direção da instituição religiosa comprava de empresas centenas de cadastros de pessoas com poder aquisitivo, os potenciais doadores. Estes nomes eram distribuídos para missionários fazerem as visitas. “Eram mais de 150 duplas, no Brasil, que viajavam para o interior do país em busca de doações mensais”, diz o entrevistado.

Segundo conta, as duplas se dividem em “Saint-Telme e retaguarda”. O primeiro é responsável pelos resultados e metas que são impostos. O outro fica com as tarefas de marcar visitas, dirigir, providenciar hospedagem, fazer as refeições e compras.

A estratégia é tão minuciosa que, durante as visitas, se aparece alguém que possa atrapalhar o pedido de donativos, o retaguarda fica com a missão de “entreter” o terceiro, enquanto o outro convence o visitado. Depois da ladainha, os arrecadadores pedem que os moradores se tornem padrinhos de um seminarista através de débito em conta.

capítulo VII

As suspeitas que pairam sobre os Arautos

Rafaela Felicciano/Metrópoles

Imagem - Capítulo 7

Navegando com desenvoltura entre a excentricidade das roupas, instalações suntuosas e a discrição de rituais secretos, os arautos emergiram para o público na época da divulgação dos vídeos de suposto exorcismo.

Na época, as cenas chocantes incentivaram pais a trocarem ideias sobre as práticas dentro dos castelos. A partir das conversas, chegaram à conclusão de que seus filhos eram submetidos a condutas abusivas. Juntos, resolveram denunciar o caso às autoridades.

Em 14 de junho de 2018, 15 pessoas assinaram representação ao Ministério Público de São Paulo. Em peça de 37 páginas, relatam minúcias do que viram, ouviram e viveram no convívio com os Arautos do Evangelho. No documento, há elementos sobre relatos de 42 testemunhas.

A petição elenca uma série de abusos, alguns deles que, se provados, configuram crime. “Os jovens não têm consciência de estar lidando com um ditador disfarçado, manipulador, o próprio fundador, João Clá Dias, que agride física e psicologicamente crianças e jovens”, diz trecho da representação.

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Diante das denúncias, a Santa Sé designou o cardeal dom João Braz de Avis, atual prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, para apurar o caso. Na mesma época, João Clá Dias renunciou ao cargo de presidente dos Arautos do Evangelho.

Em 6 de maio deste ano, um grupo de mães protocolou junto à Secretaria de Educação do Distrito Federal uma denúncia detalhada alertando aos gestores a atividade dos arautos em escolas públicas da capital federal. As mulheres falam em aliciamento e exigem providências quanto ao acesso dos religiosos às instalações de ensino.

Confira alguns relatos de ex-arautos enviados ao Ministério Público de São Paulo:

O outro lado

Os advogados que representam os Arautos do Evangelho não aceitaram conceder entrevista à reportagem. Pontuaram algumas questões por meio eletrônico. Segundo disseram, o procedimento sigiloso foi fomentado e teve início por uma ação de um grupo de pessoas que, conforme afirmam, são “sabidamente organizadas e que vêm empreendendo difamações, também provocando as redes sociais e autoridades Brasil afora, com falsas imputações aos Arautos do Evangelho”.

Negam, categoricamente, o que classificam como infundadas alegações.

“As fontes responsáveis pela divulgação de dados de procedimento amparado pelo segredo de Justiça, além de infringirem a legislação, ainda praticam uma verdadeira, repreensível e inconstitucional perseguição religiosa”, diz trecho do e-mail enviado pelos defensores da instituição.

E seguem: “Tendo em vista a reconhecida seriedade da associação, em todos os aspectos, religiosos ou seculares, os Arautos do Evangelho já estão processando criminalmente, por delitos de difamação, as partes identificadas do referido grupo, com queixas-crime distribuídas no Foro Central Criminal da Comarca de São Paulo”.

A Secretaria de Educação do Distrito Federal encaminhou a denúncia para a pasta de Segurança Pública e abriu um procedimento interno para apurar as visitas dos arautos às escolas públicas. A investigação ainda não foi concluída.

O Núncio Apostólico, que representa o Vaticano no Brasil, não respondeu aos pedidos de entrevista. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) informou que não se pronunciaria sobre o fato, já que “cabe ao Vaticano investigar e dar prosseguimento às apurações”.

O Ministério Público de São Paulo confirmou, por meio de sua assessoria, o andamento de investigações que apuram as denúncias. Mas os promotores não vão se pronunciar, pois a apuração corre em segredo de Justiça.

capítulo VIII

Movimento católico ou seita religiosa?

Andre Borges/Esp. Metrópoles

Imagem - Capítulo 8

A partir da divulgação dos vídeos de suposto exorcismo que circularam em 2017, os Arautos do Evangelho passaram a ser tratados como uma seita religiosa. Consultamos diversos especialistas para esclarecer a origem do termo “seita destrutiva”.

Autoridade em cultos e fundador do Cult Education Institute, o norte-americano Rick Alan Ross esclarece que existem três principais características para esse conceito.

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Segundo Ross, o poder que o líder de uma seita passa a exercer sobre um grupo é “comumente alcançado através do isolamento social, controle comportamental e emocional” sobre as pessoas.

“Na medida em que você pode controlar o que é alimentado na mente, você pode controlar a própria mente”, diz o norte-americano.

De acordo com o psicólogo espanhol especialista em seitas Miguel Perlado, os danos psicológicos que podem ser causados por “seitas destrutivas” são complexos e podem deixar marcas por toda a vida. Ele explica que as sequelas são maiores nas crianças do que em adultos.

“Essa diferença se dá pelo fato de os adultos já trazerem uma bagagem quando entram para a seita. As crianças não teriam outra referência que não seja o arcabouço oferecido pelo grupo”, alerta Perlado.

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