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A minha pátria é a língua portuguesa (Por Carmen Garcia)

Sabiam que mundo, quando usado como adjectivo, é o antónimo de imundo?

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Fábio Vieira/Metrópoles
Museu da Língua Portuguesa
1 de 1 Museu da Língua Portuguesa - Foto: Fábio Vieira/Metrópoles

Escrevo da África do Sul, onde vim celebrar o Dia Mundial da Língua Portuguesa a convite do Instituto Camões, com os alunos de Português de diversas escolas e universidades. E nem consigo descrever o quão especiais têm sido estes dias. É fácil ficar encantado em e por África, bem sei. Sempre me avisaram que há qualquer coisa de mágico neste continente e que, uma vez aqui chegados, ficamos presos para sempre. Mas mais do que as cores, do que o nascer e o pôr do Sol ou a beleza natural do continente, é percorrer as pontes construídas pela língua que me tem feito sentir parte de alguma coisa especial. Nunca tinha sentido tão na pele como a língua nos aproxima e transforma em parte de algo maior.

Não sou de grandes comoções, admito. Mas tem sido enternecedor ver salas cheias de miúdos, alguns deles sem qualquer ligação a Portugal e totalmente diferentes entre si, a aprenderem Português. E na altura em que se celebram 30 anos das primeiras eleições pós-apartheid e em que o país se prepara para as eleições mais imprevisíveis de sempre, é nos bancos das escolas que o sonho do país arco-íris de Mandela parece sobreviver.

No primeiro dia, em Pretória, um grupo de crianças do primeiro ciclo fez-me render. E quando no final da nossa conversa, depois de lhes ter ensinado o nome de diversos animais em português, um pequeno de oito anos, filho de indianos, me veio dizer “eu gosto da tartaruga”, não resisti a dar-lhe um abraço. Já de tarde, na Universidade de Pretória, um jovem sul-africano veio falar comigo e contou-me que se tinha inscrito no curso de Português porque um dia, no Instagram, lhe apareceu o excerto de um poema de Fernando Pessoa. E ele achou aqueles versos tão bonitos que decidiu ir procurar mais sobre o poeta que, até então, desconhecia. Apaixonou-se por aquilo que encontrou e decidiu, de forma impulsiva, mas determinada, que iria aprender Português para, um dia, poder ler todos os poemas na sua versão original. E é exactamente isso que tem feito, verso a verso, com o encantamento de quem desvenda um tesouro.

Já em Joanesburgo, também na universidade, conheci um rapaz, com pouco mais de 20 anos, de tal forma fluente e com um vocabulário tão rico que presumi imediatamente que seria descendente directo de portugueses. Acho que desencaixei a mandíbula quando ele me explicou que não tinha um único português na família, que jamais havia estado perto de Portugal e que estava a estudar Português por achar a língua extremamente bonita. Assim mesmo, com recurso ao advérbio de modo e tudo. E isto com apenas três anos de estudo de Português.

Nestes dias, tenho vivido numa bolha de amor ao Português e tem-se entranhado em mim a sensação de que a língua é mais forte do que a mais forte das colas.

Crianças lusodescendentes cujos pais já nasceram na África do Sul e que querem aprender a língua que só ouvem pelos avós, jovens que criaram uma associação para manter viva a língua das gerações que os antecederam, professores empenhados que se dedicam a mostrar, tão longe de Portugal, como pode ser mágica a língua de Camões… E depois a junção das diferentes culturas, das cores, dos risos. Aqui, enquanto o arco-íris durar, o português é europeu, sul-americano e africano. E soa a fado, a morna e a samba.

Sempre me lembro de aprender que o português é a quinta língua mais falada no mundo, mas nunca tinha parado para pensar que é a língua mais falada no hemisfério Sul do planeta. Somos já mais de 260 milhões e estima-se que, até final do século, o número de falantes de português atinja os 500 milhões. E se pensarmos a sério sobre isto, é quase impossível não sentirmos a força do assombro.

Em 2021, Ernesto Ottone Ramírez, subdirector-geral para a Cultura da UNESCO, definiu a língua portuguesa como uma língua de encontros na terra e no oceano. E eu achei esta definição tão bonita que a guardei para sempre.

Quando me preparava para estes dias em África, descobri algumas curiosidades sobre a língua que falamos que, sendo muito pouco literárias, não resisto a partilhar. E, sim, talvez seja um salto demasiado longo passar de definições poéticas para curiosidades, mas não resisto a fazê-lo. E vou começar por aquela que mais estranheza me causou.

Sabiam que mundo, quando usado como adjectivo, é o antónimo de imundo? Então, sim, podemos dizer que a sala ainda está imunda, mas que os quartos já estão mundos. E que a única palavra em língua portuguesa com plural no meio é a palavra quaisquer, tinham ideia?

Já a maior palavra da língua portuguesa tem 46 letras e, boa sorte ao tentarem dizê-la, é “pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico”. Entretanto, é também interessante a história da palavra zebra, que teve origem num equídeo existente na Península Ibérica chamado zebro. Segundo consta, quando os navegadores portugueses chegaram aqui, ao Cabo da Boa Esperança, e encontraram uma espécie de cavalos listados com semelhanças com os zebros que conheciam, atribuíram-lhe o nome de zebras que seria depois adoptado também pelos ingleses.

Já numa espécie de sentido contrário, segundo Fernando Venâncio, linguista português, as palavras “engonhar”, “espatifar” e “açambarcar” são um exclusivo nosso e apenas existem na língua portuguesa. Confesso, sem qualquer embaraço, que gosto muito das três e que quase consigo sentir na pele a portugalidade que delas emana.

Havia tanto para dizer hoje sobre a nossa língua… Porque a nossa língua tem o tamanho do mundo todo.

Ontem, ao final do dia, num restaurante na Cidade do Cabo, encontrámos um angolano e vi-lhe a felicidade nos olhos quando nos ouviu a falar em português. E a língua foi a corda que nos juntou e prendeu. Conversámos como velhos amigos, sem mais nada em comum do que as palavras ditas no idioma de Fernando Pessoa e Pepetela. Se o poderíamos ter feito em inglês? Talvez. Mas em inglês falaríamos com a boca. Em português falámos com o coração. Oferecer assinatura

Em 2008, na inauguração de uma exposição sobre a sua vida, José Saramago disse uma coisa que nunca mais esqueci: “Quero simplesmente dizer obrigadinho, que é um diminutivo que os espanhóis não entendem, mas é qualquer coisa que sai mais do coração”. E eu acho esta frase absolutamente extraordinária porque ilustra de forma perfeita o sentido de comunidade provocado pela língua portuguesa. Nenhum povo que fale outra língua poderá alguma vez entender a beleza de um “obrigadinho”, essa coisa que parece pequenina, mas que é enorme, tão cheia de genuinidade e tão nossa. “Obrigadinho” é uma daquelas palavras que nos talham porque somos feitos dela.

E que nenhum de nós duvide que, tal como escreveu Fernando Pessoa, a língua portuguesa é a nossa pátria. Uma pátria que transportamos e que se reergue de cada vez que, longe de casa, ouvimos dizer “bom dia”. Uma pátria que resistirá enquanto durarem as palavras. Uma pátria que temos obrigação de respeitar, dignificar e proteger.

Obrigadinha por terem chegado até aqui.

PS: O Dia Mundial da Língua Portuguesa é celebrado em 5 de maio)

(Transcrito do PÚBLICO)

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