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É enganoso que estudo comprovou a eficácia da cloroquina contra Covid

Texto que afirma que um estudo da Universidade de Harvard, nos EUA, comprovou a eficácia da cloroquina contra a Covid é enganoso

atualizado

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Reprodução/Projeto Comprova
Imagem colorida de posty enganoso sobre eficácia da hidroxocloroquina no tratamento preventivo contra a Covid-19
1 de 1 Imagem colorida de posty enganoso sobre eficácia da hidroxocloroquina no tratamento preventivo contra a Covid-19 - Foto: Reprodução/Projeto Comprova

Esta checagem foi realizada por jornalistas que integram o Projeto Comprova, criado para combater a desinformação, do qual o Metrópoles faz parte. Leia mais sobre essa parceria aqui.

Conteúdo investigado: texto publicado no site Médicos Pela Vida – Covid-19, e compartilhado em redes sociais, afirma que um estudo da universidade de Harvard, nos Estados Unidos, comprova que o uso do medicamento hidroxicloroquina é eficaz para profilaxia da Covid-19.

Texto publicado no site Médicos Pela Vida – Covid-19 ENGANA ao afirmar que um estudo da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, apontou a eficácia da hidroxicloroquina na profilaxia pré-exposição de Covid-19. A profilaxia pré-exposição é o uso do medicamento antes da exposição ao vírus, como forma de prevenção. Em nenhum momento, o estudo cita que o medicamento é eficaz nesse tipo de tratamento.

O artigo é uma metanálise, um tipo de pesquisa que cruza resultados de outros estudos em busca da confirmação ou não de uma hipótese, e não costuma ter caráter de comprovação científica. Além disso, esse cruzamento pode ser afetado pela qualidade dos estudos analisados. É o que acontece neste caso, em que uma das pesquisas não está publicada em revistas científicas e, portanto, não foi revisada por pares. Além disso, outro dos estudos considerados é de autoria de um dos próprios cientistas que conduzem a metanálise, o que, segundo especialistas ouvidos pelo Comprova, pode trazer vieses à metanálise.

Enganoso, para o Comprova, é conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

A conclusão da metanálise repercutida no site Médicos Pela Vida – Covid 19 foi de que “quando considerados em conjunto, os ensaios randomizados de profilaxia pré-exposição fornecem uma estimativa pontual de um risco aproximadamente 28% menor de Covid-19 para atribuição à HCQ [hidroxicloroquina] em comparação com nenhuma HCQ entre indivíduos PCR [teste molecular para Covid] negativos na randomização”.

Isso quer dizer que o cruzamento dos estudos apontou que quem tomou hidroxicloroquina poderia ter 28% menos chance de contrair Covid-19 em relação a quem não tomou, entre os voluntários dos sete estudos sobre profilaxia pré-exposição considerados na metanálise. Em nenhum momento os autores definem que o medicamento teve eficácia comprovada na profilaxia da doença causada pelo coronavírus. Eles pontuam apenas que “um benefício da hidroxicloroquina como profilaxia para Covid-19 não pode ser descartado com base nas evidências disponíveis de estudos randomizados”.

A conclusão da metanálise foi destacada no site Médicos Pela Vida – Covid-19 como uma comprovação da eficácia da hidroxicloroquina na profilaxia de Covid-19, o que não é verdade. Ela também é apontada como problemática por especialistas ouvidos pelo Comprova.

Os médicos infectologistas e professores de Medicina Alexandre Zavascki e Leonardo Weissmann questionam alguns pontos: a qualidade dos estudos selecionados, dos quais um não foi publicado em revistas científicas e nem revisto por pares, etapa básica para avaliar a qualidade de um artigo científico; o fato de o estudo usar pesquisa conduzida pelos próprios autores da metanálise; e o fato de vários estudos já revisados por pares e publicados em outras revisões não terem sido utilizados.

O estudo também não é da Universidade de Harvard, como pontua o site Médicos Pela Vida – Covid-19, que pertence a grupo de profissionais da saúde que defende o tratamento precoce, que não tem eficácia comprovada contra o coronavírus. São cinco autores, dos quais apenas dois estão ligados à universidade americana. Em uma verificação da Agência Reuters sobre o mesmo tema, a universidade negou que tenha realizado a pesquisa e disse que “não interfere no que o corpo docente escolhe investigar”. “Seria mais preciso dizer ‘um estudo de integrantes do corpo docente da faculdade’”, acrescentou. A metanálise cruzou dados de 11 pesquisas, sendo sete de profilaxia pré-exposição e quatro de profilaxia pós-exposição. Também após questionamento da Reuters, a revista que publicou o estudo afirmou que foi informada de possíveis falhas no artigo e que elas estão sob análise.

Alcance da publicação

No Facebook, o maior alcance do texto foi na página Livre Brasil, em publicação feita no dia 11 de agosto. Até 16 de agosto, a postagem tinha 252 reações, 20 comentários e 112 compartilhamentos. No Twitter, o maior alcance foi do perfil do site Médicos Pela Vida, onde duas publicações linkando o texto tiveram, juntas, 3,6 mil compartilhamentos e quase 8 mil curtidas.

O que diz o autor da publicação

Procurado, o grupo Médicos pela Vida – Covid-19 respondeu com o link de uma outro texto em seu site, publicado em resposta à verificação feita pela Agência Reuters em que diz que a “checagem que é falsa”.

Como verificamos

O Comprova analisou o estudo repercutido no site Médicos pela Vida – Covid-19, e compartilhado em redes sociais, e entrevistou profissionais sobre aspectos da pesquisa. São eles: o infectologista Alexandre Zavascki, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre (HCPA), professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do CNPq; e Leonardo Weissmann, médico infectologista do Instituto Emílio Ribas (São Paulo), professor do curso de Medicina da UNAERP – Campus Guarujá e diretor da Sociedade Brasileira de Infectologia.

A equipe também pesquisou estudos sobre hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19 publicados em periódicos acadêmicos revisados por pares, e analisou dados nos sites das agências reguladoras dos EUA, da União Europeia e do Brasil.

Foram contatados dois dos autores do estudo que aparece no conteúdo verificado, o grupo Médicos pela Vida – Covid-19 e o Ministério da Saúde. Os autores do estudo não responderam aos questionamentos do Comprova.

O estudo e seus autores

O estudo Systematic review and meta-analysis of randomized trials of hydroxychloroquine for the prevention of COVID-19 foi publicado, no último dia 9, no European Journal of Epidemiology, publicação científica revisada por pares, o que significa alto grau de confiabilidade. O estudo, porém, realiza uma metanálise de pesquisas anteriores: das 11 analisadas, uma não teve publicação em periódicos revisados por pares, o que, segundo Alexandre Zavascki e Leonardo Weissmann, prejudica a confiabilidade e assertividade do estudo. Por ser uma metanálise, Zavascki ainda destaca que ela serve mais para analisar resultados gerais de estudos já conduzidos do que para se chegar a uma descoberta nova ou comprovação de algo.

Questionada pela Reuters sobre inconsistências no estudo, a editora sênior do European Journal of Epidemiology, Virginia Mercer, respondeu que a revista foi informada de possíveis falhas no artigo e que elas estão sob análise: “Não posso fornecer mais detalhes neste momento da investigação”, disse Mercer à Reuters.

O estudo é feito por Xabier Garcia-De-Albeniz, pesquisador associado do Departamento de Epidemiologia da Harvard e pesquisador sênior do RTI Health SolutionsMiguel A Hernán, membro da Harvard-MIT Program in Health Sciences and Technology (HST), diretor do CAUSAlab, de Harvard, membro associado do Broad Institute, e funcionário da agência reguladora americana FDAJulia del Amo, do Ministério da Saúde da Espanha e professora no Instituto de Saúde Carlos IIIRosa Polo, pesquisadora na divisão de HIV, infecções sexualmente transmissíveis, hepatite e controle da tuberculose no Ministério da Saúde da Espanha; e José Miguel Morales-Asencio, professor da Universidade de Málaga, na Espanha.

Estudo não comprova eficácia de hidroxicloroquina para profilaxia

A metanálise, em nenhum momento, comprova a eficácia da hidroxicloroquina para profilaxia de Covid-19. O que os autores pontuam é que um benefício da hidroxicloroquina como profilaxia para Covid-19 não pode ser descartado com base nas evidências disponíveis de estudos considerados na análise.

Os autores ainda defendem que os achados “não estatisticamente significativos” – isto é, quando as evidências são insuficientes para provar que uma hipótese é nula ou falsa – de pesquisas feitas no início da pandemia foram amplamente interpretados como “evidência definitiva da falta de eficácia do medicamento para Covid-19”. E, para eles, essa interpretação “interrompeu a conclusão oportuna dos ensaios restantes e, portanto, a geração de estimativas precisas para o gerenciamento da pandemia antes do desenvolvimento de vacinas”. Entretanto, especialistas pontuam que não foram poucos os estudos que apontaram a ineficácia da hidroxicloroquina no combate da Covid-19, seja na pré ou pós-exposição ao vírus.

A metanálise, que é o estudo citado no texto, não aponta resultados definitivos e depende muito da qualidade dos estudos que são selecionados para avaliação, como pontua o médico infectologista no HCPA e professor da Faculdade de Medicina da UFRGS Alexandre Zavascki. “A metanálise usa um método estatístico para analisar os resultados gerais de outros estudos. O que uma metanálise não faz é avaliar a qualidade desses estudos”, diz o infectologista.

Erro básico de classificação

A metanálise usada como referência no texto do site Médicos Pela Vida – Covid-19 tem por base 11 estudos randomizados concluídos: 7 estudos de profilaxia pré-exposição (administração de hidroxicloroquina antes da exposição à Covid-19) e 4 estudos de profilaxia pós-exposição (administração de hidroxicloroquina depois da exposição à Covid-19). O estudo ainda cita que todas as pesquisas são duplo-cego (quando participantes e pesquisadores não sabem quem recebeu o medicamento e quem ingeriu o placebo). Porém, Zavascki pontua esse como um dos erros da metanálise, já que um dos estudos não é duplo-cego. Em checagem sobre o mesmo estudo da Agência Reuters, um dos autores se defendeu, dizendo que o erro será corrigido, mas que “o fato de um dos ensaios ter sido aberto não afeta os resultados da metanálise”.

Além disso, o infectologista e professor da UFRGS pontua o fato de que nem todos foram publicados em revistas científicas. O Comprova identificou um dos estudos ainda em preprint (ou seja, sem publicação), no site MedRxiv. Nele, há uma mensagem que informa que “o artigo é uma pré-impressão e não foi revisado por pares” e que, por isso, “não deve ser utilizado para orientar a prática clínica”.

“Isso chama muito a atenção. A base preprint não tem nenhum tipo de análise crítica, ou seja, você publica, escreve alguma coisa, e você põe lá e fica publicado, fica público”, explica Zavascki. “Mas o estudo não passa por uma revisão antes de ser publicado, como ocorre em uma revista científica”, completa.

Pesquisa de autor da metanálise foi incluída

Outra situação que afeta a qualidade da metanálise é que, entre as pesquisas selecionadas, uma foi conduzida por um dos próprios autores que fazem a metanálise, Dr. Xabier Garcia-De-Albeniz, como pode ser visto aqui. Esse tipo de escolha não é recomendada por especialistas, pois pode trazer interferência nos resultados. O médico infectologista Leonardo Weissmann acrescenta que a “falha na análise de vieses (erros metodológicos) nos estudos avaliados tende a produzir conclusões que diferem da realidade”.

Weissmann também pontua que nem todas as evidências sobre o tema foram avaliadas. E que isso se comprova pelo fato de que essa metanálise, publicada em agosto deste ano, “tem menos artigos analisados do que a revisão Cochrane, considerada a melhor do mundo, de fevereiro do ano passado”.

Cochrane é uma rede internacional com sede no Reino Unido, uma organização sem fins lucrativos que publica revisões sistemáticas de estudos primários sobre saúde humana e políticas de saúde. “Além disso, entre os estudos omitidos nesta metanálise, há alguns muito bons e com resultados negativos para o uso da hidroxicloroquina”, acrescenta o infectologista do Emílio Ribas.

Estudos sobre a hidroxicloroquina

Pesquisas publicadas em periódicos científicos revisados por pares, ou seja, com alto grau de confiabilidade, concluíram não haver comprovação científica de eficácia da hidroxicloroquina tanto na fase de pré-exposição ao vírus da Covid-19 quanto na pós-exposição.

O estudo Hydroxychloroquine versus placebo in the treatment of non-hospitalised patients with COVID-19 (COPE – Coalition V): A double-blind, multicentre, randomised, controlled trial, conduzido pelo grupo Cope – Coalition Covid-19 Brazil V Investigators, e publicado na revista The Lancet Regional Health – Americas, em 31 de março de 2022, foi feito com 1.372 pacientes ambulatoriais com formas leves ou moderadas de Covid-19. Um grupo recebeu hidroxicloroquina e outro, placebo.

O estudo apontou que o uso de hidroxicloroquina não reduziu o risco de internação em comparação com o grupo que recebeu placebo. Os pesquisadores, então, concluíram que não há indicação para o uso rotineiro de hidroxicloroquina para tratamento de Covid-19 no ambulatório.

O grupo Cope – Coalition Covid-19 Brazil V Investigators é coordenado pelas seguintes instituições: Hospital Alemão Oswaldo Cruz, Hospital Albert Einstein, Hospital do Coração, Hospital Sírio Libanês, Hospital Moinhos de Vento, A Beneficência Portuguesa de São Paulo, Brazilian Clinical Research Institute (BCRI) and Brazilian Research in Intensive Care Network (BRICNet). O mencionado estudo foi conduzido por 39 profissionais ligados a essas instituições.

Outros estudos chegaram a conclusões semelhantes:

– Updates on Hydroxychloroquine in Prevention and Treatment of COVID-19 – Publicado em 23/08/2021 pelo The American Journal of Medicine.

– Effect of Hydroxychloroquine on Clinical Status at 14 Days in Hospitalized Patients With COVID-19 – Publicado em 09/11/2020 pela revista acadêmica da American Medical Association

– A Randomized Trial of Hydroxychloroquine as Postexposure Prophylaxis for Covid-19 – Publicado em 06/08/2020 pelo The New England Journal of Medicine.

Em relação à pré-exposição ao vírus da Covid-19, estudos também concluíram não haver comprovação de eficácia no uso da hidroxicloroquina para prevenção da doença:

– Efficacy and Safety of Hydroxychloroquine vs Placebo for Pre-exposure SARS-CoV-2 Prophylaxis Among Health Care Workers – Publicado em 30/09/2020 pela revista da American Medical Association.

– Efficacy and safety of hydroxychloroquine as pre-and post-exposure prophylaxis and treatment of COVID-19: A systematic review and meta-analysis of blinded, placebo-controlled, randomized clinical trial – Publicado em 28/08/2021 pela revista The Lancet Regional Health – Americas.

Histórico na utilização de hidroxicloroquina na pandemia

Com a pandemia da Covid-19, houve um esforço da comunidade científica internacional para identificar um medicamento que pudesse ser eficaz contra a doença. O uso da hidroxicloroquina passou a ser considerado quando um estudo, publicado em 18 de março de 2020, na revista Nature, mostrou que o medicamento poderia bloquear a infecção por Sars-CoV-2 em células derivadas de rins de macacos.

O estudo, que antecedeu os testes em humanos citados anteriormente, impulsionou a prescrição do medicamento no tratamento da Covid-19. No dia 28 daquele mês, a Federal Drug Administration (FDA), a agência reguladora dos EUA, havia concedido a autorização de uso emergencial da hidroxicloroquina. Porém, ela foi revogada pela FDA três meses depois, em 15/06/2020, após novos dados apontarem para a não efetividade no tratamento da Covid-19.

“Além disso, à luz de eventos adversos cardíacos graves em andamento e outros efeitos colaterais graves, os benefícios conhecidos e potenciais de CQ (cloroquina) e HCQ (hidroxicloroquina) não superam mais os riscos conhecidos e potenciais para o uso autorizado”, disse a FDA à época.

Medicamentos autorizados no tratamento da Covid-19

O Comprova fez um levantamento sobre os medicamentos autorizados pelas agências reguladoras dos EUA, da União Europeia e do Brasil para o tratamento da Covid-19. A hidroxicloroquina não consta nas listas disponíveis nos sites da FDAEMA e Anvisa.

Em consulta ao sistema Bulário Eletrônico, no site da Anvisa, sobre hidroxicloroquina, foram verificadas as bulas do medicamento produzido por três fabricantes: EurofarmaSanofi Medley e EMS. Não há recomendação de uso contra a Covid-19.

Questionado se há testes em andamento para avaliar a eficácia da hidroxicloroquina, o Ministério da Saúde respondeu que “não há solicitação de registro ou indicação em bula da hidroxicloroquina para tratamento de Covid”.

Por que investigamos

Investigamos conteúdos suspeitos que viralizaram nas redes sociais sobre as eleições presidenciais, a pandemia e políticas públicas do governo federal. No caso do material investigado, a publicação confunde leitores sobre o uso de um medicamento que não tem comprovação científica de qualquer eficácia no tratamento da Covid-19, seja na pré ou pós-exposição à doença. Dessa forma, o conteúdo coloca a saúde da população em risco.

Outras checagens sobre o tema

A Agência Reuters publicou uma checagem que concluiu como falsa a afirmação do site Médicos Pela Vida – Covid 19. A Agência Lupa também classificou o texto como falso.

A hidroxicloroquina foi alvo de outras verificações do Comprova, como a que enganava ao afirmar que estudo com o medicamento comprova eficácia no “tratamento precoce” e a de vídeo de médico, também enganoso, dizendo que a hidroxicloroquina funciona contra a Covid-19.

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