Nasci Maria, simplesmente, como a maioria. Entre onze milhões e setecentas mil que há no Brasil, diz o IBGE em seus dados mais recentes. Se bem que agora devem ser onze milhões, seiscentas e noventa e nove mil, novecentas e noventa e nove Marias no país. Porque eu – eu morri.

Nasci Maria, vivi sessenta e oito anos, quase completei sessenta e nove, mas fui uma das vítimas este ano, no Distrito Federal, de um crime com nome difícil, apesar de tão comum na nossa sociedade: feminicídio. Não tentem entender, porque eu também não consigo explicar. Fui morta pelo Pipoca, menino que eu tinha como sobrinho, pois vi crescer, brincar e brigar com meus filhos.

Depois de quase sete décadas sem ser ouvida, voltam a me calar agora que estou morta. Ninguém fala sobre mim, ninguém conta a minha história. Ninguém quer saber quem eu fui, o que fiz, do que gostava. Nem sequer como eu era: se doce, como sugere a minha foto, tímida, reservada, ou alegre, espontânea, extrovertida. Nada. Um apelido: Mariquita, Maricota, Mari, Cotinha, Mariinha, Lia, Lilia? Segredos de família.

Arquivo Pessoal
Maria Almeida estava de passagem por Brasília para visitar a família do marido
Maria Almeida estava de passagem por Brasília para visitar a família do marido

Não adianta investigar, perguntar, procurar, apurar, se acercar, assediar, garimpar, se infiltrar junto aos meus familiares. Ninguém vai abrir a boca. Há um pacto. Chega de falar nessa história – uma história que, como nunca foi contada, jamais será conhecida. Não divulguem mais nada. Bastam as notícias que saíram nos jornais.

Querem saber sobre mim? Saibam apenas que nasci em Boa Viagem, no Ceará, e que, como milhares de Marias, migrei cá pra baixo. Sul? Sudeste? Centro-Oeste? Cada um que deixa escapar algo tem uma versão diferente. Ou não sabem nada, o que é o mais provável, ou escondem o pouco que há.

A maioria dos que foram ouvidos conta que eu morava em Minas Gerais. Mas há quem diga que vim de Tocantins. É possível que vivesse em Goiás, talvez em Montividiu, ou quem sabe na cidade de Goiás, também conhecida por Goiás Velho. Nesse emaranhado de desinformação, há apenas incertezas. Só em Minas, existem mais de oitocentos municípios. No estado goiano, uns duzentos e cinquenta. Como cravar de onde eu vinha?

Entre os silêncios à minha volta, informam que eu chegava (de onde quer que fosse) de vez em quando e passava um tempo em Brasília. Seja para uma consulta médica, visitar os parentes, passear ou regularizar o documento de um veículo. Hospedava-me com a família do meu marido. Numa casa no condomínio La Font, no Paranoá, um lugar aprazível, com mais de dois mil habitantes, um pouco longe do centro da capital, mas calmo e seguro. Seguro! No mesmo terreno, havia uma casa grande na frente e dois barracos ao fundo: o do Pipoca e o de hóspedes, o meu.

Da última vez, cheguei na segunda-feira, 5 de agosto. Os dois primeiros dias foram tranquilos, resolvendo pendências, batendo papo e fazendo as refeições com a família. Na noite do dia 6, ficamos até tarde, o sobrinho e eu, no sofá, vendo televisão. Mas, naquele momento, Pipoca estava remoendo as mágoas do passado, por causa dos desentendimentos com meu filho Zezinho. Certamente, não gostava das verdades que eu lhe dizia. Apesar de bom garoto, era meio descabeçado e não procedia direito. Andava fazendo besteiras, criando caso com o Zezinho, me acusando de falar mal dele. Imagine, brigalhada com o próprio primo! Eu não gosto de intriga. Saía nele: não me venha com essa de “cuidado, tia”. Como assim, ameaçar parentes?

Hugo Barreto/Metrópoles
Pipoca era sobrinho de Maria Almeida e foi classificado pela polícia como feminicida
Pipoca era sobrinho de Maria Almeida e foi classificado pela polícia como feminicida

No dia seguinte, ao contrário da véspera, ele estava nervoso ao bater na minha porta. Entrou no meu quarto de rodo em punho e partiu para cima de mim. Eu me preparava para dormir, pois no dia seguinte voltaria para casa. Por essa não esperava, tanto que mal me defendi. Afinal, apesar de forte e trinta anos mais moço, ainda era o menino que eu vi crescer.

Uma vez, duas vezes, três vezes ele me bateu com o rodo. Gritei. Gemi. Ele enfiou o cabo do rodo na minha boca. Acertou em cheio a garganta, lá no fundo, até me silenciar. Caí na cama com um último gemido e perdi os sentidos. Ele saiu do quarto.

Pipoca passou algumas horas fora, mas isso eu não vi, porque estava desmaiada, sangrando. Nem eu nem ninguém. Ninguém viu, ninguém ouviu, ninguém me acudiu.

De madrugada, ele voltou. Preocupado, sem saber se eu estava viva ou morta. Os gemidos haviam silenciado, mas o sangue ainda escorria pelo colchão, sujava o chão, as paredes, junto aos meus cabelos, que se espalharam por todo lado à força de seus golpes. O quadro não devia ser bonito. Tanto que só então ele se deu conta de que eu vestia apenas a camisola, e certamente não achou decente uma idosa, como eu, apresentar-se naquele estado.

Voltou ao seu quarto, pegou roupas suas e me vestiu. Em cima, a blusa de camuflagem que achava chique. Embaixo, a calça de moletom ainda suja de seu trabalho na terra. Eu estava encharcada, eu e a cama. Daí ele pegou cobertores, tentou limpar a cena, jogou algumas cobertas no telhado e com outras me enrolou toda. Com uma camiseta de malha, também sua, embrulhou minha cabeça para tentar estancar o sangramento e tapar os ferimentos do meu rosto. A camiseta não parava quieta. Então, ele teve a ideia de envolver minha cabeça, com a peça de roupa e tudo, dentro do capacete de sua moto, veículo azul, no qual ele se deslocava para lá e para cá, todo orgulhoso, nas andanças com más companhias, em busca de droga e confusão.

Não vi mais nada. Não o ouvi dizer, ao voltar a si e se dar conta do ocorrido: “Fiz uma besteira, acabei com a minha vida”. Mas ele disse. Para ele, aquilo só acabou com a vida dele!

Pela manhã, vieram me chamar para tomar café. Era tarde, eu já não estava mais ali. O Pipoca fugiu. Vendeu a moto por mil reais, furtou seiscentos e vinte da mãe dele. O delegado achou uns duzentos reais meus nas minhas coisas. De meu, ele só levou a vida, o passado, o futuro, uma história que nunca contei nem jamais contarei, pois agora, mais do que sempre, o silêncio me cerca.

Fui mais uma vítima de feminicídio no Distrito Federal em 2019. Crime tipificado pelas relações de parentesco, ainda que por afinidade, e pelo que a polícia chama de “hipossuficiência da vítima: idosa e frágil”. A causa da morte foi asfixia secundária à constrição cervical por esganadura. Pelas condições físicas que eu estava no momento da perícia, os peritos identificaram sinais de crueldade no ato praticado por Pipoca.

Maria, Mariazinha, Mariá? Uma a mais, uma a menos.

E o resto é silêncio.

Clara Arreguy

Clara Arreguy

Jornalista, escritora e editora. Após 30 anos de atuação em jornais, revistas e assessorias de imprensa, aposentou-se do jornalismo e criou a Outubro Edições, pela qual publica seus livros e os de outros autores. Como escritora, tem 23 títulos publicados, entre obras para crianças, jovens e adultos, romances, contos e crônicas. Nasceu em Belo Horizonte (MG) e vive em Brasília desde 2004.

Elas por elas

Neste 2019, o Metrópoles inicia projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.

Até sexta-feira (25/10/2019), 12.637 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados 27 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.

O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.

Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.

DIRETORA EXECUTIVA
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EDITORA EXECUTIVA
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EDITORA-CHEFE
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EDIÇÃO
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REPORTAGEM
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