metropoles.com

Escravidão contemporânea: resgates caíram 82% nos últimos 5 anos

Em 2013, 2.808 pessoas foram retiradas dessa condição por fiscais do trabalho. No ano passado, o número fechou em 507

atualizado

Compartilhar notícia

Sérgio Carvalho/MTE
trabalho1
1 de 1 trabalho1 - Foto: Sérgio Carvalho/MTE

Neste 13 de maio, data em que a abolição da escravatura no Brasil completa 130 anos, ainda há trabalhadores à espera de liberdade. São cerca de 155,3 mil pessoas escravizadas no país, segundo relatório da organização de Direitos Humanos Walk Free Foundation. Enquanto isso, o combate ao trabalho forçado ou em condições degradantes retrocedeu nos últimos cinco anos.

Dados do Ministério do Trabalho e Emprego, obtidos pelo Metrópoles via Lei de Acesso à Informação, mostram que, em 2013, 2.808 pessoas foram retiradas de condições laborais análogas à escravidão por auditores fiscais do trabalho. Desde então, houve queda progressiva com ápice em 2017, quando o total de resgates caiu para 507.

Entre os principais setores onde houve libertação de escravos, estão a produção florestal, pecuária, agricultura e construção de edifícios. Minas Gerais, São Paulo e Piauí concentraram a maior parte das fiscalizações, que também diminuíram: foram 303 em 2013 e somente 68 no ano passado, de acordo com a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho em Condição Análoga à de Escravo (Detrae).

As fiscalizações mais recentes ocorreram em maio de 2018, quando os auditores liberaram 34 pessoas em Santa Catarina, no trabalho rural, e 92 escravos de uma fábrica de farinha em Alagoas (veja dados abaixo).

Arte: Stela Woo

 

Especialistas apontam cortes no orçamento e falta de pessoal como algumas das principais causas do retrocesso. A Lei Orçamentária Anual reservou R$ 3,2 milhões para ações de fiscalização em 2017. Somente R$ 1,6 milhão foi investido pelo governo de Michel Temer, devido a ajustes fiscais.

Até 2012, o combate ao trabalho escravo tinha verba especificamente destinada a esse fim. Desde então, por decisão do governo, as despesas se diluíram no orçamento do Ministério do Trabalho.

Sérgio Carvalho / MTE
As imagens que ilustram essa reportagem estarão na exposição “Sobre o peso das correntes nos teus ombros”, no Senado Federal, até 18 de maio. O fotógrafo é o auditor fiscal Sérgio Carvalho

 

“Isso deu liberdade para o chefe da pasta fazer o que quisesse. Em 2017, o ministro Ronaldo Nogueira determinou um corte de 70% no orçamento do trabalho escravo, enquanto o ministério, de forma geral, teve 50% de contingenciamento”, afirma o presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), Carlos Silva.

Arte: Stela Woo

Com o baixo investimento, faltam, por exemplo, passagens aéreas para ir aos locais onde há suspeita de exploração de trabalhadores. Em janeiro, uma fiscalização no Acre foi cancelada por esse motivo. Também não há verba para pagamento de diárias para motoristas.

Silva também aponta a falta de servidores como parte da explicação para a queda nos resultados. São 2.250 auditores em atividade e 1.350 cargos vagos. “É o menor quadro nos últimos 20 anos. Um terço do total está vazio”, ressalta Carlos Silva.

Cristiano Eduardo / Sinait
Carlos Silva, presidente do Sinait: “Instituições que defendem trabalhadores estão sob ataque”

 

Denúncia à OIT
Os auditores também fiscalizam trabalho informal, acidentes relacionados à atividade laboral e questões sobre o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). “O Sinait já denunciou o governo brasileiro à Organização Internacional do Trabalho (OIT) três vezes nos últimos 5 anos por não nos oferecer condições de combater a escravidão moderna”, ressalta o presidente da entidade.

Arte: Stela Woo

 

O Brasil é signatário da Convenção Internacional do Trabalho nº 81 da OIT. No documento, há regras sobre a organização de inspeções do trabalho. O número de auditores deve ser compatível com as demandas de cada país. Em todo o território brasileiro, deveria haver 8 mil pessoas nessa função.

De acordo com o vice-coordenador nacional de erradicação de trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ulisses Dias Carvalho, o combate a essa forma de exploração não é prioridade. Pelo menos, desde 2014. “O grupo móvel de fiscalização já teve nove equipes. Hoje, há só quatro para fiscalizar o Brasil inteiro”, afirma.

O procurador critica a falta de políticas públicas para evitar esse crime. Segundo ele, quem deveria fiscalizar o cumprimento do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, de 2008, não exerce essa função.

Sérgio Carvalho / Divulgação
O auditor fez as imagens durante fiscalizações

 

O principal papel da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) é garantir a efetividade dessas regras, mas ali não é feito nada. A atribuição acaba ficando com o Ministério Público

Ulisses Dias Carvalho, vice-coordenador nacional de erradicação de trabalho escravo do MPT

O perfil do trabalho escravo no Brasil também tem mudado e, com isso, surgem novos desafios no combate à prática, conforme pontuou o representante do MPT. “O foco das ações começa a se abrir: é preciso olhar para as casas de prostituição, para a escravidão doméstica e dos migrantes”, alerta o procurador.

Chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) do Ministério do Trabalho, Maurício Fagundes faz ponderações sobre a análise dos dados. “Se a quantidade de resgates não estivesse caindo, deveríamos questionar a política pública em andamento. Poderíamos estar fazendo mais com o número correto de auditores e mais recursos, mas temos confiança de que os casos estão diminuindo em nível macro”, avalia.

Arte: Stela Woo

 

Mortes
Outra questão relevante para compreender a falta de progresso nesse campo é a insegurança, o que desmotiva a ação dos auditores. Carlos Silva relembra a Chacina de Unaí (MG), quando quatro funcionários do Ministério do Trabalho foram assassinados na região, durante uma fiscalização de rotina em fazendas, em 2004.

“Até hoje os assassinos estão livres, leves e soltos. Isso também é uma forma de impedir que os auditores atuem. É um cenário de risco, também explica a queda dos resgates”, diz Silva.

Ninguém quer caminhar para o matadouro 

Carlos Silva, sobre a insegurança dos auditores

Ameaças
Em outubro de 2017, o Poder Executivo tentou mudar a caracterização do trabalho escravo por meio de portaria. O texto exigia que houvesse restrição de liberdade ou uso de armas para então comprovar o regime análogo à escravidão. O Supremo Tribunal Federal (STF), porém, barrou as alterações.

Há quatro modalidades de execução de trabalho escravo no Código Penal Brasileiro:

      – Trabalho forçado

– Jornada exaustiva

– Condições degradantes

– Servidão por dívidas

Outra batalha travada pelas entidades trabalhistas em 2017 foi a divulgação do Cadastro de Empregadores, conhecido como lista suja do trabalho escravo. O governo federal negou a publicação dos nomes de empresas que utilizam mão de obra forçada. Os dados só se tornaram públicos por determinação da Justiça.

“Quando tivermos dúvida de quem são os exploradores do trabalho escravo, basta olharmos para quem defende portarias como essa e a não divulgação da lista, com desculpas esfarrapadas. É gente com interesse econômico em troca da dignidade de outros seres humanos”, conclui o presidente do Sinait, Carlos Silva.

Colaborou Liana Costa

Compartilhar notícia