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Não posso dar mole pra Kojak, mas sinto falta do caminhão do ovo

Meu Kojak aqui é o corona e por isso eu não desço. Mas vamos voltar às ruas. Um dia, voltaremos, e seremos melhores que hoje

atualizado

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1 de 1 arte kombi - Foto: arte

Uma das coisas que tenho saudade é ir na rua.
Eu não ponho os pés na rua há 23 dias. E, por pelo menos mais duas semanas, no mínimo, não vou sair.

Grupo de risco.
Sou diabético do tipo 2. Tudo bem, faço exercício, dieta, controlo tudo, glicose tá 80, oitentinha. Que beleza. Mas eu não posso dar mole pro Kojak.

Alguns nem sabem o que é essa expressão “dar mole pro Kojak”, nem quem é Kojak. Theo Kojak, personagem de Telly Savallas, uma série policial da década de 1970. Um cana dura de Nova York que chupava pirulito e dava o pinote pra cima do malandro quando menos se esperava.

Bezerra da Silva criou essa expressão ou, pelo menos, a popularizou. “Cuidado pra não dar mole a Kojak” era o mesmo que “cuidado com os PM”.

Ah, o Rio de 1980. Tudo dando errado, mas a gente era tão esculhambado. A gente era esculhambado demais, puro suco do politicamente incorreto, e, ao mesmo tempo, o Rio era malandro.

Meu Kojak aqui é o corona.
E por isso eu não desço.

Mas eu tenho saudade de ir numa outra rua, no subúrbio, onde se ouvia o carro do ovo. O carro do ovo não tá passando mais. A kombi do Guaraná Convenção. Carro do pão. Uns pão sem sal, sem gosto, mas 80 pães por 50 centavos. Não fiquei diabético sendo um amador. Eu via o carro do pão e já ia pela rua correndo, só de toalha de banho.

A gente tá privado dessas coisas.
E, nessa, vêm as rotinas. E, como eu disse na última coluna, as fases do confinamento. Tem a negação, tem a frustração e tem a aceitação. Que inclui a incorporação de rotinas. Mas não é tão fácil assim como eu tô falando não, amado. Rola umas crise aí.

Na coluna de ontem no Ecoa, do UOL, a dra. Júlia Rocha dá uma sapatada na minha cara. Essa ansiedade que eu sinto, essa falta de ar, isso tem outras camadas. Eu talvez não consiga me concentrar, porque o mundo não tá deixando.

Mas tanto Júlia quanto o rev. Ed René Kivitz têm razão quando dizem, em outras palavras, a mesma coisa:

o nome do jogo
é generosidade.

Essa crise está revelando o pior em muitos de nós.
Mas também está revelando o melhor.

Este confinamento pode nos fazer refletir sobre quem seremos agora e depois dele. Pense que, como homens, nós devemos refletir sobre quem somos e que privilégios temos. Há mulheres surtando porque precisam ensinar passo a passo para seus maridos como é que se vive dentro de casa.

Sério?
Sério.

Um cachorro.
Um cachorro consegue, sem ninguém pedir, encontrar:

cocaína
maconha
cheirinho da loló e um
cadáver.

Um cachorro ainda consegue, numa sala com mil pessoas, dizer quem exatamente tem:

câncer
malária
coronavírus,

sem a ajuda de ninguém.

E tu, com essa barba hipster, esse coque samurai, não consegue encontrar o chinelo, uma toalha nova, nem a tua carteira. Homens precisam sair melhores disso. Até o Doria e o Lula se falaram, dois egoicos clássicos, e tem homem que não consegue sentar no vaso pra fazer xixi, porque vai ficar com o ego ferido.

O nome do jogo é generosidade.
Seja com as pessoas negras que estão morrendo, seja pelas violências do Estado, seja por essa pandemia que não vai matar apenas pobre, nem só de 5 mil a 7 mil pessoas. Essa doença não vê classe.

Mas, com certeza, pobres estão marcados pra morrer primeiro.
Como observamos no Equador, a tragédia que se abateu: centenas de corpos nas ruas, esperando para serem recolhidos pela defesa civil.

O nome do jogo é generosidade quando você lê Mariana Belmont dizendo que chegou a hora de falar do genocídio negro. Além das mortes por uma pandemia, a favela contabiliza mortes diárias.

E, diante deste mundo que nunca mais será o mesmo,
em qual círculo nós estamos, e precisamos ser generosos?

Eu não tenho como dizer nada sem o mínimo de humor. Mas eu tenho mudado, sabe. Em tempos tão complicados, precisamos do humor e precisamos rever valores. Nós vamos, um dia, voltar pra rua. Ver o carro do ovo, os amigos. Mas não seremos os mesmos. E eu espero, de coração, que, nesse dia, sejamos pessoas melhores.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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