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No desespero, humanidade vai ao divã. Alguma chance de cura?

O mundo já acabou. Foi quando o homem branco chegou aos novos mundos e trouxe doenças que dizimaram milhões. Mas pode renascer

atualizado

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Imagno/Getty Images
Sigmund Freud no seu consultório
1 de 1 Sigmund Freud no seu consultório - Foto: Imagno/Getty Images

Além de cruel, o vírus que ameaça a humanidade é irônico e vingativo. É quase um desagravo aos incontáveis milhões de povos originários que foram dizimados pelos brancos nas Américas, na Ásia e na África, por conta de vírus, bactérias e outros transmissores de doenças para os quais eles não tinham imunidade.

Somos todos índios, neste momento. Tão vulneráveis quanto o primeiro homem nu ou a primeira mulher nua que, da praia, viu vindo de além-mar discos voadores flutuantes e deles descendo ETs embrulhados em fantasias esquisitas.

Até hoje, e principalmente hoje, os últimos índios isolados correm o mesmo risco que nós – o de que algum homem branco traga o vírus que o corpo deles desconhece.

Essa regressão perversa e irônica está levando a humanidade ao divã. E como todos os que pedem ajuda aos psicanalistas e psicólogos, a civilização está atordoada, confusa, angustiada, sem chão. Boa hora. É nos momentos mais graves que a gente vasculha a vida para tentar entender o que aconteceu.

Todos no divã, nós, em nossa inexorável solidão, e todos os sistemas que nos regem, construções fictícias que o homo sapiens inventou para dominar o planeta, como bem explicita Yuval Noah Harari no imprescindível Sapiens.

Na sala de espera de dr. Freud, estão, por certo, o capitalismo e o neoliberalismo. Talvez não queiram exatamente se conhecer. Querem sobreviver e ficar bem na foto – eles se sustentam no narcisismo doentio. Têm absoluta convicção de que o mundo existe para servi-los e todos nós temos de agradecer por termos a honra de sermos seus serviçais.

A sala de espera está abarrotada. De repente, o chão se abriu, estamos longe de chegar ao fundo e não sabemos o que nos acontecerá até lá. E é um abismo fisicamente solitário e, ao mesmo tempo, virtualmente coletivo.

Quem de nós não está de algum modo enfrentando o espelho da própria vida? Sabemos que há muitos que seguem delirantes, mas pra esses não há Freud, nem Lacan, nem Jung, nem toda a equipe de psicanalistas do planeta que dê jeito.

Como todos os privilegiados do país mais desigual do mundo, estou em casa. Faço parte, por certo, de menos de 10% da população que tem o direito (que deveria ser inexpugnável e universal) de proteger a própria vida. Os outros 90% estão nos ônibus, no metrô, nos caminhões, nas ambulâncias, nas delegacias de polícia, nos batalhões de polícia, nos escritórios, no comércio que ainda resiste, nos hospitais, nos semáforos, nas rodoviárias, nos aeroportos, nas repartições públicas, nos consultórios, no meio da rua.

O mundo vai acabar? O mundo já acabou outras vezes. Acabou quando a Europa saiu para explorar os novos mundos, como escreve Ailton Krenak no pequeno e precioso Ideias para adiar o fim do mundo:

“O indivíduo não sabia que era uma peste ambulante, uma guerra bacteriológica em movimento, um fim de mundo; tampouco o sabiam as vítimas que eram contaminadas. Para os povos que receberam aquela visita e morreram, o fim do mundo foi no século 16.”

Se este mundo acabar no século 21, teremos de inventar outro. Quem sabe pode ser, pelo menos, um pouco melhor? Quando sairmos do divã, haverá muito a ser feito. Não sou das mais otimistas, mas ainda acredito no homo sapiens, pelo menos naqueles que conseguem, aos trancos e barrancos, honrar a espécie.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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