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O que é a crônica, essa instância que, quando perdi, quis morrer?

Crônica é a irmã mais despretensiosa dos textos literários. Esta de hoje não é bem uma crônica, é uma homenagem aos cronistas

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1 de 1 escritores - Foto: Kacio Pacheco/Metrópoles

Crônica é a irmã mais despretensiosa dos textos literários. Escrevo “literários” com muito receio, porque literatura não é qualquer coisa.

Crônica não é notícia, não é ensaio, não é artigo, não é denúncia, não é protesto, não é reflexão. Também não é poesia e pode não ser literatura. Mas pode ter notícia, reflexão, protesto, poesia, literatura… Tudo depende da qualidade, do tom – ou do tantã. Se não existe batucada sem tam-tam, também não existe crônica sem ritmo e sem leveza.

Uma das minhas crônicas preferidas, senão a mais adorável de todas, é a Aula de inglês, de Rubem Braga. “Is this an elephant?”, assim começa a mais linda de todas quantas já foram ou serão escritas. “Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema.” O mestre dos mestres segue brincando com o inglês, com o português e se divertindo com o viver.

A crônica costuma ser bem-humorada, às vezes é irônica (o que é sempre um perigo) e tem um lirismo de passarinho bebendo gota d’água na folha.

Crônica é um lugar de descanso, mas também pode ser de alegria, de espanto, de tristeza. Uma das crônicas mais celebradas do século 20 é de Carlos Heitor Cony chorando a morte de Mila, sua cachorrinha (“Tendo-a ao meu lado, eu perdi o medo do mundo e do vento”).

As crônicas também podem ser amorosas, como a do Xico Sá sobre a mulher quando acorda. (“Nada mais lindo e misterioso do que uma mulher acordando, seus gestos, a dramaturgia, o arranque para a vida ou a inércia nos teus braços”)

Quando cronista, Arnaldo Jabor escreveu uma crônica que virou música, Amor é prosa, sexo é poesia. (“Amor é o sonho por um romântico latifúndio; já o sexo é MST… O amor vem de dentro, o sexo vem de fora, o amor vem de nós e demora. O sexo vem dos outros e vai embora. Amor é bossa nova; sexo é carnaval”)

A crônica foi o modo mais preciso com que já se escreveu sobre Brasília. Num dos dois imprescindíveis textos sobre a cidade, Clarice Lispector mandou ver: “Eu sei que os dois quiseram [Lucio e Oscar]: a lentidão e o silêncio, que também é a ideia que faço da eternidade. Os dois criaram o retrato de uma cidade eterna. – Há alguma coisa que aqui me dá medo. Quando eu descobrir o que me assusta, saberei também o que amo aqui”.

Verissimo é cronista de outra linhagem. Parece rir de si mesmo e do mundo, dá risos à amargura e às verdades empacotadas. Uma das minhas preferidas diz assim: “Sou um gigolô das palavras. Vivo às suas custas. E tenho com elas exemplar conduta de um cáften profissional. Abuso delas. Só uso as que eu conheço, as desconhecidas são perigosas e potencialmente traiçoeiras. Exijo submissão. Não raro, peço delas flexões inomináveis para satisfazer um gosto passageiro. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas”.

Talvez em nenhum outro lugar as palavras se sintam mais à vontade do que nas crônicas ou nas letras do bom samba (quantos cronistas excepcionais há na música brasileira!). Como este aqui: “Você sabe o que é caviar? Nunca vi, nem comi, eu só ouço falar. Caviar é comida de rico, curioso fico, só sei que se come. Na mesa de poucos, fartura adoidado, mas se olha pro lado depara com a fome. Sou mais ovo frito, farofa e torresmo, pois na minha casa é o que mais se consome. Por isso, se alguém vier me perguntar o que é caviar, só conheço de nome”. O cronista é Luiz Grande.

Kacio Pacheco/Metrópoles

Costuma-se dizer que a crônica é uma invenção nacional. É e não é. Textos curtos sobre as coisas do cotidiano devem existir em qualquer língua, mas por aqui eles são mais afetivos, mais leves, mais engraçados, mais mundanos, como, de resto, somos nós (se é que a essa altura ainda somos alguma coisa).

Que não se engane o leitor ou a leitora. Haverá dias em que escreverei algo com o nome de crônica e pode ser que não seja uma crônica como um elefante pode não ser um elefante. Às vezes, ela não vem por mais que eu tente, que eu reze, que eu escreva.

Outras vezes, ela nasce pronta.

Esta de hoje não é bem uma crônica, é uma homenagem aos cronistas.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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