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Conselheira tutelar é exonerada por defender Lula: “Vão cassar quem? A preta”

Colega de trabalho de Aline Castro, que também aparece no vídeo pedindo a soltura do ex-presidente, permaneceu no cargo, em Curitiba

atualizado

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Divulgação/Gladson Targa
Aline Castro
1 de 1 Aline Castro - Foto: Divulgação/Gladson Targa

Mulher negra, “sem papas na língua”, como ela mesma diz, Aline Castro foi exonerada, na última sexta-feira (21/5), do cargo de conselheira tutelar em Curitiba (PR), após ter um vídeo antigo vazado, no qual defendia a soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A justificativa é de que a gravação revela “idoneidade moral”, mas um detalhe – importante – intriga: a colega de trabalho, que também festejou a liberdade do petista, continua no cargo.

“Estamos na República de Curitiba. Aqui, o Judiciário funciona diferente”, disse Aline, que foi eleita em 2019 para um dos conselhos tutelares da capital paranaense, com 339 votos, sendo a segunda mais votada no ano. Agora, está desempregada e tentando organizar os sentimentos em relação aos processos que ocasionaram a demissão do posto. “Nesses últimos dias, estou só chorando”, relata.

No vídeo, que acabou vazado, talvez até por um “fogo amigo”, nas palavras de Aline, ela e a outra conselheira que vive situação semelhante, Rosana Kloester, comemoravam as eleições do Conselho Tutelar gritando “Lula livre” (na época, o ex-presidente ainda estava preso em Curitiba) e diziam: “Vocês estão fodidos” – referindo-se, segundo elas, a abusadores infantis.

De acordo com Aline, as imagens foram feitas em um momento íntimo, quando ela bebia com amigos, muito antes de assumir o cargo. “Estávamos entre amigos, comemorando e bebendo. Eu não era conselheira ainda. Nem imaginei que não pudesse falar. No dia seguinte, conseguimos retirar o vídeo do YouTube, mas tudo já havia se alastrado. Até hoje, tem gente que usa esse vídeo. Virou algo doentio”, lamenta.

“Vão cassar quem? A preta”

Depois do episódio, as duas foram cassadas pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (Comtiba). De acordo com a entidade, o vídeo teria revelado “inidoneidade moral”. Com isso, elas tiveram que recorrer à Justiça para que pudessem se manter nos respectivos cargos – até recentemente, quando as duas liminares caíram.

A de Rosana caiu no começo de fevereiro. A de Aline, mais tarde, no fim de abril. Menos de um mês depois, o Comtiba reorganizou o resultado das eleições para exonerá-la. A colega, no entanto, segue no quadro de conselheiros sub judice.

O Metrópoles entrou em contato com a prefeitura de Curitiba para entender o motivo do tratamento diverso sobre as exonerações, já que estão relacionadas a um mesmo acontecimento. Até agora, no entanto, não houve retorno. O espaço continua aberto.

Aline afirma que, durante os 14 meses em que trabalhou como conselheira na capital paraense, não teve nenhuma reclamação, pelo contrário, recebeu muitos elogios. “Em um dos julgamentos, a preocupação da promotora era de que os jovens me reconhecessem, por eu ter falado palavrão. Isso nunca aconteceu. Fiz um ótimo trabalho”, rebateu Aline, que completou: “Vão cassar quem? A preta”.

A exoneração de Aline causou comoção e rendeu, inclusive, um vídeo de Lula. “Eu quero expressar a minha mais profunda solidariedade. Eu tenho certeza de que vocês devem continuar brigando, porque essas pessoas não podem cassar a democracia exercida pelo povo”, disse o petista.

Assista:

“Direitos fundamentais violados”

O Metrópoles conversou com especialistas para entender se a exoneração, proveniente de um vídeo de manifestação política, está assegurada pela legislação. Eles afirmaram que a alegação de “idoneidade moral” não pode ser usada como argumento para a medida.

De acordo com Pedro Henrique Costódio Rodrigues, advogado especialista em direito administrativo, um posicionamento ideológico não pode ser comparado à ausência de idoneidade moral. Ele diz que a decisão pode, inclusive, ter violado direitos fundamentais.

“Fato é que não existe dispositivo legal que justifique a cassação de cargo eletivo por declarações realizadas de maneira privada. Logo, considerando que a justificativa da cassação da conselheira tenha sido o apoio ao ex-presidente Lula, me parece que a decisão viola os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal”, opinou.

Para ele, “embora o momento político atual se encontre em plena ebulição” e possibilite diversos posicionamentos, não há que se falar em “delito ou crime de opinião ou ainda em inidoneidade por eventual posicionamento ideológico”.

“Liberdade de expressão”

O advogado Camilo Onoda Caldas, especialista em direito constitucional e sócio da Gomes, Almeida e Caldas Advocacia, afirmou que há o entendimento pacificado de que, caso exista motivação expressa, a administração pode decidir pela exoneração, mas somente se o motivo for legítimo. E, no caso em questão, ele avalia que não foi o que ocorreu.

“Se a alegada falta de ‘idoneidade’ estiver fundamentada no fato de a conselheira ter manifestado uma posição política, então trata-se de fato de uma ilegalidade, pois, quando um cidadão faz uso da sua liberdade de expressão e consciência política, dentro dos limites da lei, não pode ser ele considerado inidôneo”, explicou o advogado.

Sem desistir, Aline diz que, se for preciso, entrará com uma ação pública no Supremo Tribunal Federal (STF) para que o caso dela seja revisto. “Estou desempregada, tenho filhos e cachorros para criar”, lamentou.

A conselheira exonerada avalia que, nas entrelinhas, o que houve foi: “As pessoas se intimidam com mulheres negras”.

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