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Feminicídio: registros chegam a 10 mil nos últimos 9 anos

Dados da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 ainda são menores que números da Saúde, sinal de que ainda há subnotificação de casos

atualizado

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Hugo Barreto/Metrópoles
Violencia contra mulher – Abuso – Agressão – Feminicídio  – Casal – Bebida
1 de 1 Violencia contra mulher – Abuso – Agressão – Feminicídio – Casal – Bebida - Foto: Hugo Barreto/Metrópoles

Quase dez mil mulheres foram vítimas de feminicídio ou tentativas de homicídio por motivos de gênero nos últimos 9 anos, segundo levantamento da Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180. Desde 2009, a central registrou denúncias de morte de pelo menos 3,1 mil mulheres e outras 6,4 mil foram alvo de tentativa de assassinato.

Na última década, o pico de registros ocorreu em 2015, ano em que o feminicídio foi incluído no Código Penal brasileiro como qualificador de homicídio e no rol de crimes hediondos. Naquele ano, a central recebeu 956 registros de assassinatos de mulheres, contra 69 mortes apontadas no ano anterior.

O número de denúncias, entretanto, está muito aquém das ocorrências de feminicídio. Segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, só em 2016, cerca de 4.635 mulheres foram mortas por agressões, uma média de 12,6 mortes por dia.

Subnotificação
A secretária nacional de Mulheres, Andreza Colatto, explica que ainda há subnotificação de denúncias e alerta que muitos casos de assassinato de mulheres poderiam ser evitados. “Quando nós interrompemos um ciclo de violência contra uma mulher por meio de uma denúncia simples salvamos muitas vidas”, destaca Andressa.

O Ligue 180 pode ser acionado em todo território nacional e em mais 16 países. “A denúncia pode ser feita anonimamente. Ninguém se compromete ao denunciar, apenas apoia e auxilia mulheres que ficam desprovidas de coragem para fazer essas denúncias. É necessário que a sociedade se empenhe na ajuda contra esse problema tão grave que, todos os dias, tem registrado aumento de casos no Brasil”, reforça.

Distrito Federal
Entre os casos recentes de feminicídio que ganharam visibilidade na mídia neste mês, pelo menos três ocorreram em Brasília. Segundo estatística da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, de janeiro a junho deste ano, foram registrados 14 casos de feminicídio e 33 tentativas.

Vale ressaltar que o feminicídio é caracterizado pela motivação que envolve a condição da vítima de ser mulher. É neste ponto que esse crime se difere do homicídio comum. Os crimes de feminicídio representam 6% do total de assassinatos ocorridos na capital federal. O percentual é o dobro do registrado nos anos anteriores.

O principal meio utilizado pelo agressor é a arma de fogo, seguido da arma branca. Metade das vítimas tem entre 30 e 50 anos de idade. Três em cada dez mulheres mortas no DF têm entre 18 e 29 anos.

De acordo com a pasta da Segurança, na maior parte das ocorrências, as mulheres foram vítimas das agressões em suas próprias casas. Os principais autores dos crimes eram companheiros ou namorados das vítimas.

Do total de 14 casos registrados, a Polícia Militar do DF prendeu nove assassinos em flagrante. Quatro agressores se mataram e um está foragido. Sete deles já tinham antecedentes criminais.

Reincidência
A maior parte dos casos de feminicídio há reincidência de autor do crime. Segundo a assistente social que chefia um dos Ceams do DF, Graciele Reis, casos reincidentes de violência contra a mulher são comuns e, quando não denunciados ou expostos, podem resultar em crimes mais graves como o feminicídio.

De acordo com Graciele, pelo menos duas mulheres foram mortas pelos parceiros depois de saírem do acolhimento na Casa Abrigo – local que faz parte de uma rede de instituições que visam a prestar assistência às vítimas e aos seus filhos.

“Não é apenas violência física. Nós temos a violência moral e psicológica até a financeira. E sabemos que a primeira violência não para por aí. Muitos feminicídios poderiam ter acabado com uma denúncia nas fases iniciais”, alerta a secretária nacional de Mulheres, Andreza Colatto.

Ponta do iceberg
O assassinato de mulheres devido à condição feminina é a expressão mais grave dos vários tipos de violência de gênero.

Segundo a Central, desde 2009 foram relatados quase 737 mil casos de violência doméstica – mais de 80% do total de denúncias recebidas no canal. Das agressões denunciadas em ambiente familiar nos últimos anos, quase 60% são físicas e cerca de 30% psicológicas, tipos de violência que geralmente precedem o crime do feminicídio.

De acordo com a chefe do Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam) do Distrito Federal, Graciele Reis, a violência doméstica é o crime mais identificado nos relatos de mulheres.

“Violência doméstica é o carro-chefe. Normalmente, quando a mulher busca ajuda já chegou na violência física. Para que ela entenda que está passando por uma violência psicológica, realmente ela está no ápice da humilhação, do isolamento”, alerta a assistente social.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), um terço das mulheres do mundo já sofreram alguma vez na vida violência física e/ou sexual. A organização estima que mulheres expostas a violência doméstica têm duas vezes mais chance de desenvolver depressão e uso abusivo de álcool.

Violência psicológica
Graciele destaca que a melhor forma de prevenir o feminicídio é identificar os casos de violência psicológica. Mas, em geral, as mulheres não conseguem compreender que vivem uma situação de abuso e são submetidas, por muitos anos, aos excessos de maridos e companheiros. “O [abuso] psicológico precisa estar quase na violência física para ela compreender que está numa relação violenta, ela tem que estar sofrendo muito já”, explica.

Casos de violência sexual e patrimonial dentro do casamento também são menosprezados, segundo a assistente social. “Fica naquela cultura, ‘eu trabalho, mas ele administra meu dinheiro porque sabe usar melhor’ e isso tudo vai podando a mulher de ter a liberdade, de ter autonomia, de fazer o que ela quiser com o dinheiro do próprio trabalho”, analisa.

“Todo mundo entende violência sexual como aquele estupro que puxa, rasga roupa. Mas aquela fala do homem ‘você é fria, você não quer nunca’, ‘você é minha esposa e tem que cumprir também esse papel’; ele fica mal-humorado, ela cede para ele não ficar grosseiro, as mulheres não compreendem isso como violência sexual”, ressalta.

Para a vice-presidente do Instituto Maria da Penha (IMP), Regina Célia Almeida Silva Barbosa, é importante ficar atento a agressões verbais e importunações que, muitas vezes, são vistas com naturalidade.

“Feminicídio não começa com feminicídio. Ele começa nas sutilezas daquilo que muitas vezes o autor da violência entende como uma permissão [da mulher]”, afirma Regina Célia.

O Ceam atende mulheres de diferentes perfis sociais – desde pessoas em situação de rua até mulheres ricas. Em comum, elas têm o medo de retaliação do companheiro e de serem julgadas pela sociedade, a falta de informação sobre os tipos de violência e as dificuldades de expor o problema, principalmente na esfera policial e criminal.

“Já atendemos mulheres que passaram por violências físicas graves, dente arrebentado, facada, tiro, paulada. Não é fácil se deslocar de casa [para denunciar], não é fácil criar coragem, mas há vários casos de superação”, disse Graciele.

Acolhimento e prevenção
Márcia*, 44 anos, é um das mulheres atendidas pelo Ceam que tem superado o medo e o trauma da violência doméstica. Durante os anos de casada, ela foi impedida de estudar e trabalhar por ciúmes desmedidos do marido. O desejo de encerrar o relacionamento de oito anos tornou o companheiro mais agressivo. Ele se recusou a deixar a casa e passou a humilhar e maltratar a mulher.

“Eu estava triste, porque não estava mais dando certo e eu vi que já estava começando a ficar doente, não estava mais aguentando. Eu estava tão abalada que não sabia o que fazer, a gente fica sem chão, sem rumo, sem forças”, relata.

Márcia passou a perceber que ele estava a ponto de agredi-la. Prevendo o pior, ela decidiu buscar ajuda. “Liguei no 180, conversei, desabafei um pouco, porque eu estava vendo que eu tinha que me movimentar, porque se eu não me mexesse, eu já estava enxergando o que ia acontecer”, completou.

Ela também recorreu ao Ceam onde recebeu atendimento psicológico e assistência social. “Elas perceberam que eu estava precisando e começaram a me atender. Ali é um meio de ajudar as mulheres que passam por problemas de violência, não só física, mas psicológica. Realmente fortalece, porque quando a gente se sente esmagada, triturada por alguém é como se não tivesse ninguém para te acolher, te amparar”, conta.

Quando Márcia buscou apoio, o ex-companheiro saiu de casa, intimidado pela iniciativa da mulher de denunciar a situação. Hoje, ela cursa faculdade e já está aconselhando amigas da vizinhança que passam por situações de violência a buscarem ajuda.

“Se todas as mulheres que passam por isso pudessem evitar a partir desse momento da agressão psicológica, antes de chegar à agressão física, eu acho que já seria um grande fato para evitar esse número de mortes”, afirma.

Dificuldade
Na experiência diária de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica, a chefe do Ceam do Distrito Federal diz que há uma dificuldade dos policiais e dos operadores da Justiça de enquadrar o abuso psicológico – como o caso de Márcia – se não estiver acompanhado de uma evidência como xingamento ou lesão corporal.

“Precisa trazer a violência psicológica à luz, porque isso tem destruído as mulheres que acabam desenvolvendo transtornos mentais seríssimos. E, infelizmente, o Estado ainda não está preparado para ouvir essas vítimas de forma qualificada”, critica Graciele.

 

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