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Moradores em situação de rua têm auxílio de R$ 600 negado

No entanto, como há falta de cadastro, número de pessoas que moram na rua e não receberam o auxílio emergencial pode ser bem maior

atualizado

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Hugo Barreto/ Metrópoles
Homem puxando carrinho com materiais recicláveis em frente a muro
1 de 1 Homem puxando carrinho com materiais recicláveis em frente a muro - Foto: Hugo Barreto/ Metrópoles

Pelo menos 26 mil brasileiros moradores de rua não receberam o auxílio emergencial de R$ 600, criado pelo governo federal para ajudar – em tese – famílias de baixa renda durante a crise econômica causada pela pandemia do novo coronavírus.

Hoje, 144,5 mil pessoas estão inscritas no Cadastro Único (CadÚnico) do governo federal como “em situação de rua”. Desse total, o auxílio de R$ 600 foi pago a 118,6 mil cidadãos. Ou seja, 18% (26 mil) deixaram de receber assistência emergencial.

No entanto, o número de pessoas que moram na rua e não receberam o auxílio financeiro pode ser bem maior. Para começar, nem toda essa população está no CadÚnico, sistema que permite identificar quem são e como vivem as famílias mais vulneráveis no país.

Levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicado em junho deste ano aponta que a população em situação de rua cresceu 140% nos últimos oito anos e chegou a quase 222 mil pessoas em março de 2020. Com a crise, essa cifra deverá aumentar.

Dessa maneira, considerando que 18% desse total não estão recebendo o benefício, o número real seria de 39,9 mil cidadãos fora do auxílio emergencial. No entanto, especialistas acreditam que a taxa de negação para quem não está no CadÚnico seja maior.

Isso porque a Dataprev usou três bases de dados para analisar quem está apto a receber o auxílio de R$ 600: beneficiários do Bolsa Família, inscritos no Cadastro Único e os “milhões de invisíveis” que fizeram o cadastro pelo aplicativo ou site da Caixa Econômica.

Logo, essa grande parte de moradores de rua que não estão no CadÚnico – 78 mil brasileiros – precisaria de um celular, de um computador ou da santa ajuda de uma terceira pessoa para pedir o benefício emergencial. Muitos deles não conseguiram.

“Quando o governo coloca a necessidade de se ter um celular para se cadastrar, isso fugiu da realidade da população em situação de rua, pois os serviços, como o Centro POP e o Cras, estavam fechados por causa da pandemia”, pontua o coordenador do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), Darcy Costa.

“Ou seja, só quem estava inscrito no CadÚnico começou a ser analisado”, afirma Costa, ao elogiar a atuação do padre Julio Lancellotti, da paróquia São Miguel Arcanjo e coordenador da pastoral do Povo de Rua, no bairro da Mooca, em São Paulo (SP).

Trabalho pastoral

Desde 7 de abril, quando o governo lançou o aplicativo e site para se cadastrar no auxílio emergencial, a frente da igreja São Miguel Arcanjo tem recebido uma demanda maior de moradores de rua. A pastoral comandada pelo padre Julio tem ajudado a população a obter o benefício.

De início, os moradores de rua recebem todos os cuidados possíveis: álcool em gel, máscara facial e, ainda, o lanche do dia. Em seguida, vão para o atendimento, que começa às 7h e termina por volta do meio-dia.

Até 2 de julho, quando se encerrou o período para se inscrever no programa, a pastoral realizou mais de 700 cadastros. No entanto, o trabalho não parou por aí. Como muitos tiveram o auxílio negado, chegou a fase da contestação. Sob o comando da advogada Juliana Hashimoto, cerca de 100 processos foram judicializados.

“Foi uma dificuldade muito grande de conseguir. Alguns não tinham CPF ativo, outros tinham perdido o RG. Teve um que não lembrava nem a data de nascimento dele”, explica o padre Julio, em conversa com o Metrópoles, ao avaliar que o governo federal ignorou os moradores de rua.

“Vários que receberam a primeira parcela estão com a segunda bloqueada. Eles constam como se estivessem presos ou empregados, por exemplo, mas não… estão na rua. Encontramos o caso de um que consta no sistema como morto”, prossegue o religioso.

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No total, o Ministério da Cidadania bloqueou o cadastro de cerca de 1,3 milhão de pessoas. Desse total, 51% foram identificados com forte suspeita de fraude e 49% têm uma “inconsistência cadastral”.

Para comer e procurar emprego

O desempregado Edvaldo Félix, de 34 anos, é um dos 100 moradores de rua que precisaram da ajuda da pastoral do padre Julio para tentar na Justiça Federal obter o auxílio emergencial. O benefício foi negado para ele por causa de um trabalho temporário entre janeiro e março deste ano. Em abril, ficou desempregado e hoje mora em um abrigo.

Edvaldo conversou com a reportagem do Metrópoles por meio de um telefone simples, que não suporta algumas redes sociais. “Tem sido mais difícil procurar emprego agora com pandemia. Como não tem ‘Zap’, não tem ‘Face’, é um aparelho simples, é difícil acessar a internet”, desabafa.

“Se o auxílio emergencial fosse pago, eu poderia procurar um emprego, pois teria dinheiro para comprar um celular melhor”, relata. “Acho que seria bem mais fácil também para almoçar um bom prato. Hoje, estou almoçando na rua, esperando alguma doação”, complementa.

Até entrar com a judicialização, Edvaldo teve o auxílio negado três vezes. Ele diz que se sente injustiçado. “Não é correto o que fizeram comigo. Negaram três vezes, mandaram contestar. E tem muita gente que está recebendo ilegalmente, deu muito erro. Eu deveria ganhar para me manter, para almoçar e para procurar emprego”, afirma.

“Procure um advogado”

Entre os moradores de rua com o auxílio negado, Edvaldo tem sorte ao contar com a ajuda dos advogados da pastoral Povo na Rua. Isso porque, para contestar a negativa, é possível entrar com pedido de contestação de resultado por meio da Defensoria Pública da União (DPU).

No entanto, a população em situação de rua esbarra mais uma vez na tecnologia. Os defensores públicos estão em trabalho remoto e, para entrar com uma solicitação de contestação, é preciso fazer o pedido de forma on-line, no site da DPU ou por e-mail.

“A Defensoria Pública está fazendo só atendimento remoto, e para fazer esse atendimento, a pessoa precisa ter acesso à internet e grande parte da população de rua não tem acesso. Então, a exclusão continua”, avalia o padre Julio.

Além disso, a DPU – já sobrecarregada com excesso de pedidos de contestação do auxílio de R$ 600 – está presente, além das 27 capitais, em apenas 43 cidades do interior. Ou seja, moradores de 98,8% dos municípios do país não terão ajuda pública para contestar o resultado.

O próprio governo admite que a DPU não poderá atender a todas as pessoas atingidas. “Nesses casos, o caminho é buscar um advogado particular ou procurar diretamente a subseção da Justiça Federal para atermar o seu pedido de prestação de assistência jurídica”, completa.

Situação triste

Há 21 anos morando em uma invasão na Estrutural, região administrativa do Distrito Federal, a catadora de material reciclável Alessandra Alves, 41 anos, que também teve o auxílio negado, conseguiu contato com um defensor público, mas ainda não obteve resultado.

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Ela é mãe de cinco filhos e, com a chegada da pandemia, a vida ficou mais difícil para ela, uma vez que os galpões foram fechados e, desde então, está sem trabalhar. “Sem produção, sem ganhar nenhum real. Foi um desastre”, afirma. Na casa de Alessandra, todos ficaram desempregados.

“São cinco desempregados dentro de casa: minhas três filhas, eu e meu esposo”, relata. “Graças a doações, a gente está sobrevivendo, mas estou com seis contas de água atrasadas e, graças a Deus, não mandaram cortar ainda”, completa.

“A situação é triste porque a gente sempre faz as coisas tudo certinho, mas quando chega a hora da necessidade, a gente fica chateado por ser negado”, desabafa.

Caixa Tem limitado

Os problemas também estão presentes na vida de quem teve o auxílio aprovado. Essas pessoas esbarram ainda na impossibilidade de sacar o dinheiro, uma vez que a Caixa Econômica limitou, desde maio, as movimentações no aplicativo Caixa Tem. O objetivo da medida, segundo o presidente do banco, Pedro Guimarães, é evitar aglomerações.

Hoje, o dinheiro é depositado primeiramente na conta Poupança Social digital, onde é possível pagar boletos e contas de água, luz e telefone, por exemplo – sempre pelo Caixa Tem. Após um período – que varia bastante, mas que chega a ultrapassar um mês –, a Caixa libera as opções de saques e transferências.

“Eles receberam o depósito na conta em junho, julho, mas só podem mexer no dinheiro em setembro. E esse é o problema, porque precisam desse dinheiro para comprar comida, não para pagar conta”, frisa a coordenadora do Movimento Popular por Moradia do Distrito Federal e Região (Amora), Cristiane Pereira dos Santos.

“O acesso a wi-fi não é uma coisa simples, não é uma coisa fácil. Dizem que o Caixa Tem não consome dados, mas precisa estar em um lugar com wi-fi para entrar ou ter o 4G”, ressalta.

Outro lado

Procurado, o Ministério da Cidadania destacou que o auxílio emergencial foi pago até o momento a mais de 65,4 milhões de brasileiros. Segundo a pasta, os investimentos superam os R$ 145,9 bilhões, em pouco mais de cinco meses. “Mais de 126,2 milhões de pessoas são beneficiadas direta e indiretamente com a ação”, assinala o órgão.

“Importante destacar também que o auxílio emergencial é responsável por levar a taxa de extrema pobreza do Brasil ao menor patamar em 40 anos. A análise é do economista da FGV/Ibre Daniel Duque. A partir das pesquisas de amostras domiciliares do IBGE, em especial a Pnad Covid-19, é possível mensurar que 3,3% da população brasileira, ou 7 milhões de pessoas, viviam na extrema pobreza em junho deste ano”, diz.

Já em relação ao fato de que a falta de celular impede o acesso ao auxílio emergencial, o Ministério da Cidadania afirmou que fez parceria com a empresa Correios justamente para que o público que não tenha familiaridade ou acesso às novas tecnologias pudesse realizar o requerimento do benefício.

A ação foi lançada no início de junho, ou seja, menos de um mês para o período de cadastro no auxílio de R$ 600 se encerrar. No total, o país tem mais de seis mil agências dos Correios – a empresa pública federal está presente em todos os municípios. A expectativa era realizar até 27 milhões de atendimentos.

“Agora que o prazo para a solicitação do benefício terminou, nas agências dos Correios é possível fazer o acompanhamento do processo de solicitação do auxílio emergencial”, prossegue a pasta, comandada pelo ministro Onyx Lorenzoni.

“Além das iniciativas que envolvem o pagamento do auxílio emergencial, o governo federal editou medida provisória que abriu crédito extraordinário de R$ 2,5 bilhões para o Sistema Único de Assistência Social. Os recursos estão sendo usados para abrigar moradores de ruas, idosos e demais pessoas em situação de vulnerabilidade social”, finaliza.

Cruzamento de informações

Por sua vez, a Dataprev informou que todo o trabalho foi executado sobre o auxílio emergencial a partir das regras definidas pelo Ministério da Cidadania, órgão gestor do benefício, para atender à Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020.

A Dataprev afirmou ter realizado o processamento dos pedidos do benefício por meio do cruzamento das informações autodeclaradas pelos cidadãos no portal ou aplicativo com os dados das bases oficiais disponíveis, no momento da análise.

“Paralelamente, o Ministério da Cidadania e os Correios firmaram parceria para atender à população mais vulnerável, sem acesso a meios digitais, que ainda não conseguiu solicitar o auxílio emergencial”, reforçou, em nota enviada à reportagem.

Nesse contexto, a Dataprev foi acionada pela pasta e desenvolveu uma aplicação específica integrada ao sistema dos Correios para atender à população ultravulnerável.

“Desde o início desse programa inédito no país, as equipes do governo federal têm atuado para que os recursos cheguem, de fato, a quem precisa. Foram feitas parcerias com diversos órgãos para garantir transparência dos processos, evitar fraudes, atendimento da população e fiscalização dos procedimentos executados no auxílio emergencial”, finaliza a Dataprev.

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