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De falta de médicos à venda de remédios: gestão Bolsonaro ignorou denúncia sobre os Yanomamis

Equipe de saúde de Roraima fez denúncia sobre falta de médicos, descumprimento de contratos e até venda de remédios destinados aos Yanomamis

atualizado

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Condisi
Crianças Yanomami
1 de 1 Crianças Yanomami - Foto: Condisi

O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ignorou denúncia sobre a situação crítica do povo Yanomami em Roraima. Profissionais de saúde denunciaram formalmente para a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), em 2021, várias situações graves que estavam ocorrendo com os indígenas da região, mas não houve providências.

As denúncias passam por falta de atendimento médico, descumprimento de contratos e até venda de remédios que deveriam ser destinados aos Yanomamis. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decretou estado de emergência na região na sexta-feira (20/1) e anunciou uma série de medidas humanitárias.

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Em maio de 2021, uma equipe da Funai foi visitar uma menina Yanomami internada no Hospital da Criança Santo Antônio, em Boa Vista (RR). Ao chegar no local, os indigenistas se depararam com relatos sobre a omissão na assistência à saúde para os indígenas.

A maior parte da denúncia é em relação ao Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y), que é vinculado ao Ministério da Saúde e deve fazer o acompanhamento da saúde dos cerca de 30 mil indígenas em um território que inclui Roraima, Amazonas e a fronteira com a Venezuela.

Fora do contrato

De acordo com a denúncia, pelo menos dois terços da equipe de enfermeiros do DSEI-Y não entravam no território indígena para realizar o atendimento dos Yanomami. Isso porque, segundo os relatos, esses funcionários também trabalhavam em outras instituições, fora da área indígena.

Acontece que o contrato de trabalho desses enfermeiros na Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) exige exclusividade para trabalhar com os Yanomami. O DSEI-Y contava com 807 profissionais atuando em 37 polos, segundo dados de novembro de 2021.

O atendimento médico dos Yanomami é complexo, porque se trata de um povo com comportamento seminômade. Assim, a equipe de saúde precisa usar aeronaves e caminhar vários quilômetros a pé para acompanhar os indígenas. O isolamento é maior nas áreas em que há invasão de garimpeiros e conflito. Os Yanomami convivem com uma verdadeira epidemia de desnutrição e malária. Também há registro de contaminação por mercúrio, mais uma herança do garimpo ilegal.

Doença e fome

Ainda segundo a denúncia, raramente havia médico para atendimento dos indígenas na Casa de Saúde Yanomami, mesmo local que Lula visitou no sábado (21/1). Além disso, teria falta de intérpretes para os profissionais se comunicarem com os pacientes.

Para piorar, quando algum indígena conseguia atendimento médico, eles informaram que havia demora no transporte de volta até o território Yanomami.

Com isso, os indígenas acabavam perdendo suas roças de plantação, que só podiam ser recuperadas após um ano. De acordo com as denúncias, isso afetou diretamente na alimentação dos Yanomami.

Venda de remédios

Outro problema denunciado é que o tratamento das crianças indígenas durante a internação não tinha continuidade na terra indígena, porque faltavam medicamentos e equipes de saúde.

Sobre os medicamentos, foi denunciado que servidores estavam vendendo equipamentos, mobiliários, remédios e combustível que deveriam ser usados na assistência aos Yanomami. Por conta da complexidade no atendimento, o DSEI-Y recebe a maior parcela de investimento dos distritos sanitários indígenas, totalizando R$ 261 milhões entre 2019 e 2021.

Em novembro, a PF e o Ministério Pública Federal (MPF) fizeram uma operação contra o desvio de remédios para malária e verminoses, destinados para crianças indígenas Yanomami. Na ocasião, foram cumpridos 10 mandados de busca e apreensão.

Segundo a PF, de 90 tipos de remédios adquiridos pelo DSEI-Y, apenas 30% teriam realmente chegado aos indígenas. O caso está em fase de inquérito e tramita em sigilo. Nesta semana, a PF começou uma nova investigação para apurar crimes ambientais e de genocídio no território Yanomami.

Outras denúncias

Além do relato da equipe de saúde de Roraima, a situação dos Yanomami foi denunciada de outras formas durante o governo Bolsonaro.

Em maio de 2022, uma nota técnica do Grupo de Trabalho em Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) citou um estudo que mostra que os déficits nutricionais das crianças Yanomami são os mais graves já revelados entre crianças indígenas no continente americano.

A “tragédia humanitária” na Terra Indígena Yanomami também foi denunciada durante audiência da comissão externa da Câmara dos Deputados em maio de 2022, com a presença da deputada Joenia Wapichana, atual presidente da Funai.

Em julho do ano passado, uma carta da Hutukara Associação Yanomami dizia: “Nossas crianças chegam ao ponto de expelir vermes pela boca”, por falta de tratamento médico adequado.

Já em agosto de 2022, reportagem do site The Intercept mostrou que a Hutukara enviou 21 pedidos de ajuda aos Yanomami, com relatos de ataques de garimpeiros e pedidos de reforço na segurança.

Destino da denúncia

A denúncia da equipe médica sobre a situação dos Yanomami foi oficializada em um relatório da equipe da Funai, mas não houve uma tomada de providência.

O relatório foi encaminhado para a Secretaria Especial de Saúde Indígena, a Sesai, que não respondeu a Funai, que por sua vez não cobrou uma resposta ou insistiu por providências.

Em contato com a reportagem, o ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga informou que todos os distritos sanitários indígenas recebiam a mesma atenção e que o caso dos Yanomami estava sob responsabilidade da Sesai. “É uma situação complexa e antiga”, afirmou.

Queiroga enviou ainda um documento que descreve as ações da Saúde em relação aos Yanomami e enumera as áreas com dificuldade de acesso por conta da segurança das equipes. “Trata-se, no entanto, de problemas que, conforme farta documentação existente, são comuns, há décadas, aos indígenas yanomami brasileiros e venezuelanos”, diz trecho do documento.

“Em relação aos problemas específicos solicitados em sua pergunta com destaque para a eventual venda de medicamentos, o problema foi de conhecimento da esfera policial e do ministério público que, por sua vez, empreenderam as investigações necessárias”, adicionou o ministro.

“Em relação à demora para remover pacientes, essa é uma questão operacional que também estava a cargo do coordenador do DSEI que foi acionado e solucionou o problema com a empresa aérea que à época estava encarregada dos serviços.”

A reportagem também entrou em contato com o ex-secretário da Sesai, coronel Reginaldo Ramos Machado. Até o momento, ele não se manifestou, mas o espaço permanece aberto.

Procurado pela reportagem por aplicativo de mensagem, o ex-presidente da Funai, Marcelo Xavier, enviou uma série de textos, vídeos, matérias e apresentações de slide sobre os Yanomami e outros povos indígenas. O material criticava ações dos governos Lula e Dilma em relação aos indígenas, mostrava que o problema no território Yanomami é antigo e defendia a gestão do governo Bolsonaro.

“A execução da saúde indígena é atribuição da Sesai e não da Funai”, escreveu Xavier. A reportagem insistiu por uma resposta sobre as denúncias em relação à saúde dos Yanomami e lembrou que a Funai tem a atribuição de fazer o acompanhamento das ações de saúde desenvolvidas em prol das comunidades indígenas. Até o momento, ele não se manifestou novamente, mas o espaço permanece aberto.

O ex-presidente Bolsonaro chamou a ação de Lula em atenção aos Yanomami de “farsa da esquerda” e disse que foram realizadas 20 ações de saúde em territórios indígenas no governo dele.

A ex-ministra dos Direitos Humanos se posicionou pelas redes sociais dizendo que a pasta denunciava violações de direitos dos indígenas e encaminhava para os responsáveis, mas que quem seria responsável por executar a política indigenista seria a Educação, Saúde e Justiça.

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