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De Chagas Freitas a Witzel: como o RJ se perdeu e o que pode esperar do futuro

Cidadãos fluminenses convivem há anos com denúncias contra todos os governadores que foram eleitos desde a redemocratização e estão vivos

atualizado

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Igo Estrela/Metrópoles
Wilson Witzel_Flávio Bolsonaro
1 de 1 Wilson Witzel_Flávio Bolsonaro - Foto: Igo Estrela/Metrópoles

Haveria uma imagem para simbolizar a decadência política do Rio de Janeiro? Talvez a do ex-governador Anthony Garotinho se debatendo na ambulância em 2016, quando deixava um hospital rumo ao presídio. Ou a “farra dos guardanapos”, protagonizada em Paris por outro ex-governador, o colecionador de condenações Sérgio Cabral, e revelada pelo próprio Garotinho em 2012. Mais justo seria uma combinação de imagens dos dois já citados e de outros três mandatários fluminenses nas últimas décadas no momento de suas prisões, sempre acusados de corrupção.

Todos os governadores do Rio de Janeiro que foram eleitos e estão vivos enfrentam problemas com a Justiça. Os que não foram presos chegaram pelo menos a ser afastados do cargo em algum momento, como ocorre agora com Wilson Witzel (PSC), acusado de participação num esquema de desvios de recursos da saúde pública em plena pandemia de coronavírus.

Visitar essas histórias de desvios de tantos milhões de reais em dinheiro público é olhar para capítulos tristes da história do Rio de Janeiro, bem diferentes de uma imagem simpática cultivada ao longo do tempo. Mas não há necessidade de se começar pelo pior.

O fato de hoje sabermos com detalhes de esquemas criminosos que corroeram o poder público fluminense tem um lado positivo, na opinião do pesquisador Michael Mohallem, coordenador do Centro de Justiça e Sociedade da FGV Direito no Rio. “Significa que um dos problemas estruturais da política no Estado, que é a captura pelos governantes do controle externo exercido pelo Ministério Público, parece estar sendo superado”, afirma ele.

“Além do foco nos governadores, seria inimaginável, há alguns anos, que o MP investigasse dois filhos do presidente da República, um político tradicional do estado”, completa o acadêmico, referindo-se ao vereador Carlos e ao senador Flávio Bolsonaro.

Essa crescente independência do MP estadual, para Mohallem, pode abrir caminho para administrações mais transparentes no Estado. “Outro problema estrutural é a falta de controle interno, as corregedorias têm dificuldade de cumprir seu papel. Se o MP também é capturado, é baixíssima a capacidade de se investigar a corrupção, pois faltam meios”, analisa ele. “E isso tem mudado.”

Essa captura é bem ilustrada pelo desdobramento do já citado episódio da farra dos guardanapos.

Cabral, hoje criminoso confesso cujas penas impostas já se aproximam dos 300 anos de prisão, contou em depoimento que negociou com o então chefe do MP para arquivar esse processo. Após a festa em que o então governador, secretários e empresários se deixaram fotografar bêbados e com os guardanapos na cabeça, uma investigação foi aberta.

O processo, no entanto, foi arquivado em uma sessão do Conselho Superior do MPRJ em novembro de 2013, com placar de 6 a 4.

Segundo o ex-governador preso, o então procurador-geral de Justiça do Estado do Rio, Marfan Vieira Martins, cobrou a nomeação do então promotor Sérgio Nogueira de Azeredo, que era chefe de gabinete de Marfan, para o cargo de desembargador. Vieira Martins nega que isso tenha ocorrido – mas a nomeação foi feita.

Na época, às vésperas da Copa do Mundo de 2014, os sinais do terremoto político que abalaria o Estado ainda eram tênues. A crise só começou a se desenhar mais claramente quando Cabral foi preso, em novembro de 2016, e seus crimes começaram a ser desvendados definitivamente.

Relembre os casos dos políticos que governaram o Rio de Janeiro e se enrolaram com a Justiça

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As raízes

Para o cientista político Paulo Baía, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apesar dos expressivos números que surgem quando se fala de Sérgio Cabral, ele não é o protagonista do esquema, mas uma engrenagem a mais em um modelo clientelista que começou a se formar no fim da década de 1960, atravessou a transição democrática e tenta se manter até hoje no Rio.

“Nessa época, final dos anos 1960, tivemos no Rio o ‘chaguismo’, o modo de fazer política surgido com o grupo do então governador Chagas Freitas [político morto em 1991], em que há indistinção entre o público e o privado, entre lícito e ilícito”, analisa ele, que não vê esses problemas como exclusivos do Rio, mas concorda com seu colega de FGV no fato de ter havido um agravamento porque a corrupção entrou forte no MP e no Judiciário estadual.

Para o especialista, “quando Brizola [Leonel Brizola, falecido em 2004, foi eleito governador do Rio em 1982] assume, ele faz um acordo com o chaguismo, e metade do governo é de nomes do chaguismo, que se tornam brizolistas de ocasião”.

Baía vê uma continuidade no governo seguinte, de Moreira Franco (1987 a 1991), um dos ex-governadores enrolados com a Justiça, e na volta de Brizola ao cargo, mas acredita que houve uma interrupção na gestão de Marcello Alencar (1995 a 1999).

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“Mas o grupo aproveitou para se renovar no legislativo, com nomes como Sergio Cabral, e voltou ao Executivo na gestão seguinte, com Garotinho [em 1998]. Foram base de todos os governos desde então, incluindo o da Benedita [do PT, entre 2002 e 2003. Ela foi vice de Garotinho; mas é a única que nunca foi presa nem está implicada nos escândalos].

A relação entre corrupção e milícia

Ainda segundo o professor Paulo Baía, essa confusão entre público e privado e entre lícito e ilícito na cúpula dos poderes está relacionado ao crescimento das milícias no estado do Rio. “As pessoas veem as milícias como grupos que disputam com traficantes, mas elas são piores, são o poder público agindo em benefício próprio”, avalia ele.

O futuro

Não muito diferente do que o cidadão fluminense já está acostumado, o futuro próximo da política local é incerto. O afastamento de Witzel não é definitivo, apesar de a maioria dos atores políticos do Estado duvidarem de sua volta ao poder.

Pois esse poder já tenta se ajustar em volta do vice de Witzel, o hoje governador em exercício, Cláudio Castro (PSC).

Apesar de também recaírem suspeitas sobre ele, não há provas claras e a tendência, em princípio, é de que tenha a chance de tentar compor um governo ao menos até o início do ano que vem, pois é improvável que a Assembleia Legislativa local lhe tome o cargo ainda este ano, abrindo mão do poder de indicar o próximo governador pela via indireta caso haja afastamento a partir do ano que vem.

E é aí que entra o interesse da família Bolsonaro no processo político estadual. “O vice é um político de baixa estatura, então vai depender de forças políticas para se manter. E o Rio tem estado desconectado da política nacional, algo que o presidente Bolsonaro gostaria de reverter”, avalia Michael Mohallem, da FGV.

Além disso, o governador que estiver no cargo ao fim deste ano irá indicar o próximo procurador-geral do MP estadual, assunto que interessa ao investigado Flávio Bolsonaro, que se aproximou publicamente do governador em exercício.

Chance para a oposição?

Pré-candidata à prefeitura do Rio este ano, a deputada federal petista Benedita da Silva não vê raízes tão profundas na crise do estado que já governou. “A crise do estado do Rio é reflexo direto da crise do Brasil após o golpe do impeachment em 2016. Vemos o que deu o mantra de que ‘basta tirar a Dilma’. Tiraram Dilma, mas também tiraram o emprego, os direitos, o pré-sal e a soberania nacional. Acabaram com o setor da indústria naval e do óleo e gás”, avalia ela, em conversa com o Metrópoles.

Para a política, a solução para o estado do Rio, assim como a origem do problema, passa fundamentalmente por Brasília. “A solução sustentável para o nosso estado depende muito de um governo federal que retome o projeto nacional de desenvolvimento baseado na inclusão social, geração de emprego e soberania. Com a dívida do estado refém de um governo vingativo e antidemocrático, como o de Bolsonaro, dificilmente o Rio de Janeiro encontrará uma saída”, provoca ela.

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