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Como enfrentar o surgimento da nova extrema direita? (Por Juan Arias)

Incrível que existam milhões de pessoas no Brasil que, cientes das violentas aberrações de Bolsonaro, tenham votado nele novamente

atualizado

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Fotografia colorida com duas bandeiras penduradas lado a lado
1 de 1 Fotografia colorida com duas bandeiras penduradas lado a lado - Foto: Reprodução

Cada vez mais o mundo gira em uníssono. Tudo acaba sendo universal, a começar pela política. Vemos, por exemplo, o ressurgimento da nova extrema-direita com as suas várias matizes, não excluindo as de matiz nazi e fascista. Começou como algo isolado e até antiquado, mas logo tomou forma e incendiou o planeta. E já está chegando a todos os cantos.

Pensar que esse novo fenômeno que preocupa a todos pode se limitar a alguns países é pura utopia. Veio para ficar e se multiplicar como um vírus. Aqui no Brasil, essa nova direita dominou tudo com graves consequências, não só políticas, mas também econômicas, que levaram 30 milhões a passar fome.

Lula, o novo presidente que em semanas tomará posse como chefe de Estado, entendeu isso de imediato com a acuidade política que o caracteriza. Ele reconheceu que em seu terceiro mandato as coisas vão ser diferentes do que no passado, já que a extrema-direita de Bolsonaro continuará não se conformando com a derrota e fará de tudo para impedi-lo de governar. Desta vez, não se trata de uma simples mudança de poder, mas de ter que enfrentar aqueles que negam os valores da democracia, demonizam as liberdades e perseguem os valores democráticos.

A questão que os analistas políticos dos continentes onde esta nova extrema direita está se enraizando começam a enfrentar é como lidar com ela, já que ela se apresenta como uma nova bactéria resistente a todos os seus antídotos. Talvez estejamos diante de algo novo e ainda não decifrado. De nada adiantaria enfrentá-lo com força e até agradaria seus anfitriões e seguidores , amantes da violência e do olho por olho. Para essa nova ultradireita, o discurso do diálogo soa obsoleto. Ela prefere o confronto e até a violência. A coisa do diálogo soa como algo de outros tempos desprezíveis.

Em meio à preocupação com esta ascensão repentina da extrema direita mundial – com seus líderes medíocres sob todos os pontos de vista, mas corajosos e que acreditam firmemente na violência-, os analistas políticos começam a estudar qual poderia ser o melhor antídoto contra esta nova praga política que está a envenenar a própria essência da democracia, que é o diálogo, a liberdade e o pluralismo de ideias.

Alguns dizem que ainda não existe, como em outros momentos da história, um verdadeiro profeta capaz de entender o novo fenômeno político e analisá-lo em sua própria essência, pois nada, nem mesmo na natureza, nasce por acaso.

É verdade que a obra How Democracies Die , de Steven Lewitsky e Daniel Zibblatt, aborda com inteligência a questão das democracias ameaçadas pelo novo populismo. No entanto, desde então as coisas mudaram rapidamente e a nova ultradireita escapou aos cânones do passado. Estamos diante de um fenômeno novo que só conseguiremos entender e enfrentar se aceitarmos que é uma forma inédita de atacar as próprias raízes dos valores da liberdade.

O caso do bolsonarismo no Brasil, talvez mais do que o do trumpismo nos Estados Unidos, poderia servir para tentar entender a possível “novidade” dessa nova direita radical e extrema, violenta e alérgica a todas as liberdades e inovações oferecidas pelos tempos modernos, e isso supõe a antipolítica em estado puro.

Dito isto, o que ainda não foi abordado com seriedade é por que esse fenômeno nasceu agora e com tanta força que parece um incêndio difícil de apagar. Sem dúvida, muito disso está diretamente relacionado à crise, também global, dos valores da democracia e da política como tal que, para dizer em palavras simples, que todos entendem, empobreceu e deixou de ser uma maneira de organizar de forma justa e plural o modo de convivência e organização da sociedade e dos povos, para se tornar aos olhos de todos um negócio econômico e de privilégios pessoais. Entra-se na política, ou assim parece, para ganho pessoal, um jogo feito à luz do sol e que já não embaraça quem se vale dele.

Essa mercantilização da política e o abuso dela para ganho pessoal não é mais escondido, é visível para todos e é feito até no nível do Congresso Nacional, como acaba de acontecer aqui no Brasil com o vergonhoso e descarado “orçamento secreto”, graças ao qual os deputados recebem milhões de um fundo para aplicar em obras com fins claramente eleitorais. E é secreto porque ninguém deve saber quem recebe e quanto. O STF está tentando anular esse orçamento e até Lula já admitiu que se continuasse em vigor teria que contar com ele se quisesse governar.

Essa situação de degeneração da democracia que permanece como uma noz vazia de seu verdadeiro significado inicial poderia explicar por que existem milhões de pessoas, hoje, em todos os países que votam na nova extrema direita não porque sejam fascistas, inimigos da liberdade, violentos por natureza ou desconhecem as novidades que a ciência está preparando. Muitos o fazem, como já aconteceu aqui no Brasil, não porque sejam naturalmente contrários às liberdades. É algo mais.

Analisando o resultado das últimas eleições brasileiras que levaram à vitória de Lula , o que espanta é que houve milhões de pessoas que, mesmo sabendo das violentas aberrações de Bolsonaro e da desolação que ele criou no país, votaram nele novamente .

O que começa a ficar claro é que há milhões de pessoas no mundo, talvez desinformadas, que se sentem envergonhadas e indignadas com os usos e abusos cometidos por políticos ditos democráticos, não raras vezes com a conivência da própria justiça que participa da mesma festa. Isso leva as pessoas mais simples a dizerem com desdém que “todos são iguais”.

Não o são, mas é verdade que o crescimento da nova extrema-direita começa a surgir como resposta ao descrédito universal em que caíram os verdadeiros valores da democracia e das liberdades individuais e coletivas. Essas pessoas, desanimadas, manifestam seus piores instintos de violência.

São aqueles instintos que todos carregamos conosco desde o surgimento do Homo sapiens e diante dos quais somente os valores da cultura, do diálogo e da solidariedade universal podem servir de dique seguro contra a onda de violência, de todos os matizes, que ameaça nosso pequeno planeta invisível e acaba envenenando nossa convivência.

(Transcrito do El País)

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