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Caio, um cidadão brasileiro (por Tânia Fusco)

Caio tem síndrome de Down e perfeito conhecimento das suas limitações. Lida com elas, brinca com elas. Até tira proveito, vez por outra

atualizado

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Rafaela Felicciano / Metrópoles
Menino brincando - Metrópoles
1 de 1 Menino brincando - Metrópoles - Foto: Rafaela Felicciano / Metrópoles

Cidadão com necessidades especiais, Caio navega pela vida com as dificuldades adicionais das minorias que ainda têm cidadania de segunda classe. No domingo, 2 de outubro, votou pela primeira vez. Sem medo, sem dúvidas nos votos, vestiu camiseta vermelha e foi às urnas. Passou o dia muito feliz. Ficou feliz também com o resultado. “Dei sorte. Meus candidatos foram para o segundo turno. Agora é votar pra ganhar”.

Caio tem 18 anos. Desde os 16 espera votar. A pandemia adiou um pouco seu desejo. “Importante é que em 2022 eu voto”, confiava. Ele é assim. Percebendo que a vida é um pouco mais difícil pra ele, procura o lado melhor das coisas. E sempre acha.

Quando o Corinthians perde – o que tem acontecido bastante -, lá vai ele pensar no próximo jogo. Se o time perder de novo, vem com essa: “Futebol é assim. Ganha e perde. Importante é a torcida ficar fiel”.

Fidelidade não falta ao Caio – nem ao Coringão, nem aos seus amores próximos ou nem tanto. Diz que já nasceu corintiano raiz e que virou petista faz muito tempo. Já nem lembra mais quando.

– Mas, por que o PT?

– Porque é dos trabalhadores. Trabalhador precisa de ajuda da política.

Dia desses foi chamado de lulista pela avó. Corrigiu: Sou petista. Indagado sobre a diferença de uma coisa e de outra, foi firme: “Gosto muito do Lula. Um cara legal. Mas partido é mais importante. É igual time. Pode trocar jogadores, mas continua o mesmo clube. Temporada boa ou temporada ruim e a torcida fica fiel à camisa”.

O cara “de boas, suave” como diz no seu paulistês raiz, vez por outra, perde a linha com a zoação de futebol. Tem limite, diz, marcando: “O tempo inteiro zoando dá muita raiva. A gente fica fúria. Vai pra briga”.

Nos últimos dois anos, Caio foi pra briga algumas vezes na escola. Não só por futebol. Apanhou, bateu. Algumas vezes, admitiu: “Erro meu”. Foi lá, pediu desculpas e vida que segue. Mas, cobra principalmente que é pouco ouvido mesmo quando tem razão. O que é real na vida dos especiais. Maior a fragilidade, menor a paciência de outros para ouvir, entender e defender.

“O mundo é assim”, simplifica.

Nesse “é assim” do mundo cabe conviver com preconceitos e rejeições – explícitas ou não. Cabe sofrer discriminação e booling na escola. Quando a barra pesa mais e a família pensa, por exemplo, em mudar de escola, Caio finca pé e diz: Eu aguento a pressão! E isso é definitivo. Significa que ele segue na mesma escola, com a mesma turma. Com a pressão.

Talvez já tenha entendido que, trocar de escola, resulta em alívio pequeno. O booling virá. O descaso e a discriminação também. E ele terá de conviver com elas. Isso é parte da vida dos especiais, dos pretos, dos pobres, dos índios, dos LGBTQI+. Ainda que bem próxima da realidade deles, não alcançamos o grau das violências inseridas em seus cotidianos. Viver dói. Pra eles mais ainda.

Caio tem síndrome de Down e perfeito conhecimento das suas limitações. Lida com elas, brinca com elas. Até tira proveito, vez por outra. Terminando o ensino médio, confia: “Nas cotas” vai conseguir sua vaga em alguma faculdade de Educação Física.  Sonha ser treinador de futebol ou ator. Ou os dois.

No Brasil com muito faz de conta, Caio já registrou a dificuldade dos pais para encontrar escolas inclusivas particulares ou públicas. È “na boa vontade” que muitas acolhem os portadores de necessidades especiais. Sem o devido material, sem preparação adequada de professores.

Caio já percebeu que, na maioria das salas de aula, ele é meio o aluno café com leite – importa pouco se aprende muito ou nada. Desde que não “atrapalhe” os outros.

Assim, se vira. O interesse por futebol melhorou escrita, leitura e conhecimentos de geografia. Sabe tudo sobre seu esporte favorito mundo afora – times, clubes, treinadores, atletas e seus custos, as negociações milionárias nas janelas de transferências.  O curso de teatro ajudou a melhorar a emissão da voz, as entonações. Também fez mais amigos entre os seus iguais.

No judô, ganha força. Na natação, peitoral, músculos. A terapia dá força pra aguentar as pressões. Adora as aulas de filosofia e de história. “Faz pensar mais”, explica. Curte muito as baladinhas com funk, sertanejo e “um forrozinho”. Dança muito. Tem um canal do Youtube. “Pra falar com a galera”. Costuma ficar horas indagando sobre grandes acontecimentos, como Guerra da Ucrânia e suas consequências. Vai ao Google e busca a localização exata do conflito. Especula com um e com outro até tirar suas conclusões. Tipo: “Quem faz guerra é bandido – dos dois lados. Vai mesmo é matar um monte jovens, de crianças, de pobres. Sabe por quê? Só por dinheiro, dólar”.

No domingo, deixou por menos a guerra pesada desta eleição, feliz da vida, votou e deu letra: “Ó só? Já sou cidadão adulto. Isso é muito importante na nossa vida”.

 

Tânia Fusco é jornalista 

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