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Boi Voador, Fado Tropical (por Tânia Fusco)

Nassau anunciou que naquele dia glorioso um boi voaria. O truque para produzir o inusitado foi empalhar a carcaça de um boi falecido

atualizado

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Boi Voador
1 de 1 Boi Voador - Foto: Reprodução

A história do Boi Voador aconteceu em Recife, Pernambuco, no século VXII, e está contada pelo frei Manuel Calado, no livro O Valoroso Lucidemo, de 1648, quando parte do nordeste brasileiro foi colônia holandesa – entre 1630 e 1654.

Pernambuco era a sede desse Brasil holandês que tinha como capital a Cidade de Maurícia – homenagem ao Conde Maurício de Nassau, que ali governou de 1637 a 1643.

Dado a grandes sonhos e grandes obras, Nassau construiu pontes sobre o rio Capiberibe, unindo Recife à cidade Maurícia e ao continente.

Para trazer mais pagantes (de pedágio) à inauguração das pontes, o danadinho do Nassau anunciou que naquele dia glorioso um boi voaria. O truque para produzir o inusitado foi empalhar a carcaça de um boi falecido.

Com povo na rua, fez desfilar pelas pontes um boi de bons modos que, ao fim do trajeto, foi devidamente escondido, dando espaço ao voo, movido por cordas, do bovino voador.

Em 1973, essa história, aqui resumida, virou marchinha na peça “Calabar: Elogio à Traição”, arte de Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra. Ficou assim:

Quem foi, quem foi

Que falou do boi voador

Manda prender esse boi

Seja esse boi o que for

O boi ainda dá bode

Qual é a do boi de revoa

Boi realmente não pode

Voar atoa

É fora, é fora, é fora

É fora da lei, é fora do ar

Segura esse boi

É proibido voar

 

Domingos Calabar, todo mundo sabe, na versão oficial, foi um senhor de engenho de Alagoas que, em 1632, se bandeou para os holandeses, ajudando a Companhia das Índias Ocidentais a vencer portugueses e, por um tempo, aqui fincar bandeira. Calabar acabou traído. Julgado e enforcado. Os holandeses também perderam a peleja e voltaram pra casa.

Nos idos de 70, tempos de pouca prosa e muito pau, a peça Calabar foi, of course, proibida pela censura. Mas as 11 músicas que embalavam a história seguem belas,  muito bem cantadas.

“Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo (além da sífilis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora…”

Versos que, na versão original, eram declamadas por Ruy Guerra, angolano de gostoso sotaque lusitano.

Longa e linda, Fado Tropical é um lamento. Perfeito para ouvir sempre. Particularmente em feriados quentes, de possíveis tempestades.

Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro abril
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

Declamado: “Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo (além da sífilis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora…”

Com avencas na caatinga
Alecrins no canavial
Licores na moringa
Um vinho tropical
E a linda mulata
Com rendas do Alentejo
De quem numa bravata
Arrebata um beijo

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

Declamado: “Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa
Mas meu peito se desabotoa
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa”

Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre trás-os-montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial

De verdade, boi voador não existe. É só uma alegoria. Boi anda em pasto, com as quatro patas no chão. Desembestado, oferece perigo. Melhor evitar proximidade. É mais seguro.

Os fados têm sonoridade triste. Mas são belos. Não chore.

Hoje é nosso 199 dia da Independência. Ano que vem, serão 200. Um ano passa rápido. Mantenha a calma.

 

Tânia Fusco é jornalista 

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