Desde os tempos da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, diplomatas e militares dedicaram-se à arte de interpretar pequenos gestos do oponente. Gestos que poderiam significar muita coisa ou quase nada.
Como os melhores jogadores de xadrez, os times de analistas buscavam entender se os movimentos no tabuleiro poderiam ser parte de um grande plano, pequenos passos em direção a um objetivo ainda obscuro ou simplesmente uma forma de provocação.
Os russos, que há tempos deixaram de ser soviéticos, permanecem no radar de analistas americanos, especialmente depois que decidiram, há um ano, enviar seus tanques no que até hoje chamam de operação especial na Ucrânia.
Mas o principal oponente de Washington nesse jogo de percepções atende em novo endereço. Agora os americanos têm pela frente os estrategistas de Beijing. Os dois lados ainda não reconhecem estar em uma Guerra Fria do século 21, mas emitem sinais nessa direção.
Como nos anos 70 do século passado, movimentos de aproximação e afastamento parecem se alternar. As últimas semanas se encaminhavam aparentemente para uma reaproximação. O secretário de Estado norte-americano, Anthony Blinken, tinha viagem marcada para Beijing.
Pois o movimento foi interrompido depois que um grande balão branco de origem chinesa foi visto sobre o remoto estado norte-americano de Montana, que abriga instalações de mísseis nucleares dos Estados Unidos.
O balão carregava equipamentos tecnológicos do tamanho de dois ônibus e foi abatido pela Força Aérea americana quando se deslocou para a costa da Carolina do Norte, como forma de evitar que sua queda em áreas populosas pudesse causar danos materiais ou humanos.
Assim que os restos do balão forem encontrados, as autoridades norte-americanas poderão avaliar se se trata mesmo de um balão espião, como suspeitam, ou se seria apenas um balão meteorológico que saiu de rota, como alega o governo da China.
De uma forma ou de outra, será preciso analisar a presença do balão nos céus dos Estados Unidos sob a ótica do velho jogo de xadrez.
Caso se trate de um balão espião, por que deixá-lo tão à vista? Se for mesmo um balão meteorológico, que estranha rota seria essa da qual teria se desviado? E por que o balão apareceu sobre Montana às vésperas da viagem de Blinken?
Mesmo que o grande artefato branco tenha apenas função meteorológica, sua simples presença sobre Montana – salvo no caso improvável de desvio de rota por ventos inesperados – teria significado político. O que se poderia chamar de um balão de ensaio.
A detecção do balão e o cancelamento da viagem de Blinken ocorreram poucos dias depois da divulgação de uma preocupante análise da Agência Central de Inteligência (CIA) sobre os planos militares de Beijing a respeito de Taiwan, que China considera uma província rebelde.
O diretor da agência, William Burns, informou – com base em estudos de inteligência – que o presidente da China, Xi Jinping, teria instruído suas Forças Armadas para estarem prontas a conduzir uma bem-sucedida invasão de Taiwan até 2027, quando termina seu terceiro mandato.
“Isso não quer dizer que Xi Jinping tenha decidido promover a invasão”, recordou Burns. “Mas serve como lembrança da seriedade de suas ambições”.
A reintegração de Taiwan ao território chinês é uma espécie de objetivo nacional permanente de Beijing – ainda que promovida de forma lenta, como ocorreu em Hong Kong. Da mesma forma, a defesa da integridade de Taiwan é uma das bandeiras da gestão de Joe Biden.
A desestruturação das cadeias globais de fornecimento durante a pandemia do coronavírus demonstrou a importância estratégica dos chips produzidos em Taiwan para todo o mundo. Essa importância acrescenta uma espessa camada econômica a um grande desafio político.
Até aqui, segundo a revista norte-americana Foreign Policy, Biden tem obtido apoio nos Estados Unidos por seu foco na China, apesar da guerra na Ucrânia. Inclusive por investir bilhões de dólares na manufatura de chips e na pesquisa científica nos Estados Unidos.
No entanto, ressalva a publicação, pouco tem sido feito para deter o crescimento da competição militar entre as duas maiores potências do mundo. Mesmo as negociações sobre temas como mudança climática têm sido prejudicadas pela política de Washington sobre Taiwan.
O governo norte-americano aprovou, por exemplo, a venda de US$ 3,8 bilhões em armas para a ilha. E a admissão de Biden de que Taiwan poderia declarar sua independência em relação a Beijing, além de outras decisões, teria ampliado – nessa análise – o risco de guerra entre os dois países.
A presença de um grande balão branco chinês sobre os Estados Unidos pode até não significar nada. Mas precisa ser interpretada em contraste com o céu nebuloso das relações bilaterais.
Uma guerra entre Estados Unidos e China teria consequências catastróficas para todo o planeta. A começar, é claro, pela própria região onde se encontra Taiwan.
Segundo análise recente do Centro de Estudos Estratégicos Internacionais, de Washington, a aliança EUA-Japão-Taiwan seria capaz de derrotar uma invasão anfíbia tradicional promovida pela China. Mas os Estados Unidos e seus aliados perderiam dezenas de navios, centenas de aviões e dezenas de milhares de soldados. E a economia de Taiwan seria devastada.
Por isso é tão importante evitar que pequenos erros de interpretação se multipliquem e venham a contaminar o diálogo entre as duas grandes potências.
Até aqui foi apenas um balão branco que adiou a visita a Beijing do secretário de Estado dos Estados Unidos. O resto do mundo espera que novos fatos aparentemente menores, como esse, não impeçam os dois países de continuar conversando.
Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.