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A cloroquina do transporte (Por Cristovam Buarque)

O jeitinho é filho do negacionismo que domina a política brasileira, desde sempre, por eleitos e eleitores, sobretudo por populistas

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Igo Estrela/Metrópoles
Presidente Bolsonaro segura caixa de hidroxicloroquina enquanto discursa. Ele é branco, usa terno e mostra a caixa de remédio numa das mãos enquanto fala ao microfone - Metrópoles
1 de 1 Presidente Bolsonaro segura caixa de hidroxicloroquina enquanto discursa. Ele é branco, usa terno e mostra a caixa de remédio numa das mãos enquanto fala ao microfone - Metrópoles - Foto: Igo Estrela/Metrópoles

Há décadas o orgulho brasileiro pela prática de jeitinhos cobra alto preço, ao preferir gambiarras e ilusões, no lugar do enfrentamento correto de nossos problemas. O atual presidente tentou a gambiarra da cloroquina para enfrentar a tragédia do covid: o resultado são centenas de milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas. Mas a gambiarra não é prática apenas do atual presidente. O jeitinho é filho do negacionismo que domina a política brasileira, desde sempre, por eleitos e eleitores, sobretudo por populistas e imediatistas.

Investimos em uma modernidade apressada, tendo a indústria automobilística como carro chefe do crescimento, independente de suas consequências. O resultado são nossas “monstrópoles”, resultantes do inchaço das cidades, sem planejamento, sem cuidados, crescendo descontroladamente e recebendo gambiarras no lugar de estruturas robustas.

A tragédia de Petrópolis, nesta semana, e muitas outras no passado recente, decorrem deste comportamento de jeitinhos e gambiarras fruto do negacionismo diante da dimensão do problema. A tentativa de controlar o preço do combustível é outro exemplo.

Para viabilizar a indústria automobilística, baseamos nossa economia no petróleo. Apresentamos as linhas férreas, desprezamos o transporte de cabotagem e fluvial, relegamos o transporte coletivo urbano movido por eletricidade. Baseamos a mobilidade diária de centenas de milhões de pessoas na queima do petróleo, que vai acabar e cujo preço necessariamente tende a subir. Tomamos e mantemos esta opção, mesmo sabendo que a crise ecológica vai provocar a proibição do uso do petróleo para energia, como alguns países já estão fazendo.

No lugar de buscarmos alternativas, preferimos negar as verdadeiras causas da crise e buscamos manipular o preço da gasolina, tabelando na Petrobrás ou desviando recursos públicos para subsidiar o preço do combustível na bomba. Todos os partidos disputam qual terá mais criatividade para forçar a baixa do preço, nenhum propõe tocar nas causas reais do aumento do preço. Fazem lembrar a ideia do kit covid para a cura do vírus. Os mesmos que criticavam o atual desastroso presidente que renegava vacina e defendia a cloroquina, agora defendem cloroquina para enfrentar a crise do preço do combustível: a gasolina barata é a cloroquina do transporte.

O certo seria entender o terrível vírus que mata o sistema de transporte baseado no automóvel privado movido a petróleo, e buscar a vacina em um sistema de transporte sintonizado com o futuro: coletivo e elétrico. Obviamente com medidas emergenciais para atender a população carente no imediato.

Felizmente o povo brasileiro tomou vacina, mesmo contra o governo, mas o povo não muda o padrão do sistema de transporte e, lamentavelmente, os candidatos à presidência parecem todos preferirem a cloroquina do transporte, o kit combustível, no lugar da vacina para o vírus do transporte: não apresentam uma reorientação para evitar que o sistema de transporte seja contaminado pelo petróleo, seus preços e custos ecológicos. Para os candidatos, apenas o presente importa, e este pode ser administrado pelo jeitinho, as gambiarras dos kits que diminuem a dor de cabeça até o dia em que se precisa de entubação. Por décadas usamos gambiarras no dia a dia das políticas brasileiras, e está chegando a hora de medidas não negacionistas, mas todos somos negacionistas quando a vacina proposta exige sacrifícios. Prefere-se adiar até o dia do colapso do transporte por falta de combustível, ou o colapso das finanças por subsídios ao consumo de petróleo e o colapso ecológico pela manutenção do consumo.

Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

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