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Vinho e ópera se fundem em uma história de cultura e gastronomia

O vinho estimula visão, olfato, paladar e tato. A ópera envolve nossa audição e visão

atualizado

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Gabi Cerqueira/Divulgação
Espetáculo Operata – Fotos Gabi Cerqueira (2)
1 de 1 Espetáculo Operata – Fotos Gabi Cerqueira (2) - Foto: Gabi Cerqueira/Divulgação

Sou, desde criança, apreciador esporádico de óperas. Um tio de ascendência italiana que escutava na vitrola, em alto volume, suas árias prediletas. O filme, tantas vezes reprisado na Sessão da Tarde, O Grande Caruso (1951), com Mario Lanza no papel principal. Ainda na TV, as apresentações, em diversos programas, até no Chacrinha, do barítono brasileiro Paulo Fortes. Sem falar da influência das histórias contadas pelos meus pais sobre quando frequentavam as elegantes temporadas de ópera do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Depois as escutei, ao longo dos anos, em vinil, fita cassete, CD, DVD, no YouTube e, agora, no Spotify.

Vinho e ópera; ópera e vinho. As afinidades são enormes, e não podemos pensar num casamento tão feliz

Aguinaldo Záckia Albert

Filipe Cardoso/Especial para o Metrópoles

A ópera não é apenas manifestação musical, mas sim uma obra teatral posta em música, na qual ao canto (de papel preponderante) somam-se o acompanhamento orquestral, o libreto, o texto do canto, o cenário etc. É isso: drama ou comédia teatralizados e musicados.

No palco, os compositores encheram suas óperas com canções sobre vinho e embriaguez. O vinho geralmente é usado como catalisador dramático, ou seja, um produto que terá efeito sobre a cena e poderá mudar as circunstâncias de alguma forma. A bebida funciona também como elemento de celebração, está presente nas festas e recebe os heróis de batalhas. Além de instrumento de sedução, consola as mágoas de amores não correspondidos.

O vinho estimula visão, olfato, paladar e tato. A ópera envolve nossa audição e visão. Cada um nos embriaga à sua maneira. Mas se os combinarmos, teremos uma experiência sensorial completa.

Vinho harmoniza com ópera

Da mesma forma que é quase impossível harmonizar um único vinho com uma refeição de vários pratos, tentar combinar uma solitária garrafa com uma ópera inteira, sem considerar a diferença entre suas árias, é desperdiçar a oportunidade de fazer uniões mais sutis.

Aqui começa uma verdadeira imersão na emoção por meio da ópera e do vinho. Façamos, então, um resumo da ópera.

As duas primeiras peças que compõem a trilogia de comédias para teatro de Pierre Beaumarchais: O Barbeiro de Sevilha (1775), As Bodas de Fígaro (1784) e A Mãe Culpada (1792), se transformariam em óperas.

Sirvam-me o vinho! – MESCETEMI IL VINO! (Barbeiro de Sevilha, 1845, de Rossini com versos de Andrea Maffei). Fígaro, é um barbeiro que faz de tudo em sua cidade: arranja casamentos, ouve confissões, espalha boatos, enfim… um verdadeiro prodígio de imaginação.

O vinho é exaltado como o único prazer da vida verdadeiramente fiel, pois os amores terminam e a amizade é passageira.

Bodas de Fígaro (1786, de Mozart) é uma continuação, 30 anos depois, da vida de Fígaro, iniciada em O Barbeiro de Sevilha. Nos preparativos do casamento de Fígaro (serviçal do Conde de Almaviva) com a donzela Susanna, ele descobre que o Conde pretende exercer seu direito de tomar o lugar do noivo na noite de núpcias e começa a bolar estratagemas para impedir que isso aconteça.

Mozart, em seu repertório operístico, utilizou diversas reminiscências de trechos que se misturam, aqui Susanna canta “Fin ch’han dal vino calda la testa“, ária famosa de Don Giovanni. Sugestão: espumante Cava Brut.

O nome do vinho chileno Almaviva faz referência ao personagem Conde de Almaviva, herói das peças O Barbeiro de Sevilha e As Bodas de Fígaro. Outra sugestão: o vinho Almaviva.

Don Giovanni

O tema de Don Giovanni (1787, de Mozart) é baseado na história de Don Juan, o lendário conquistador. O nobre utiliza o vinho para seduzir donzelas com promessas de casamento, abandonando-as em seguida. Quando já jurado de morte por maridos ciumentos, ele canta uma das mais famosas árias relacionadas ao vinho de que se tem notícia: “Fin ch’han dal vino calda la testa“, também conhecida como Champagne Ária.

Embora o espumante não seja mencionado na ária, ele solicita que seu criado organize uma festa convocando todas as mulheres que encontrar e sirva vinho até que elas fiquem embriagadas: “Para que o vinho ponha suas cabeças girando”. Seu desejo é ver sua lista de conquistas aumentada em uma dezena. Quando uma de suas ex-amantes tenta convencê-lo a mudar de vida, ele exclama: “Vivan le femmine, viva il buon vino! Sostegno e gloria d’umanità” (Vivam as mulheres e o bom vinho! Sustento e glória da humanidade). Logo depois, com uma taça de vinho Marzemino na mão, ele recebe a visita de um fantasma para ser levado ao inferno. Sugestão: vinho Marzemino do Trentino, Itália.

A Cavalleria Rusticana (1890, de Pietro Mascagni) se passa na Sicília, Itália, no século 19. Após a missa do Domingo de Páscoa, o jovem Turriddu, pouco antes de ser desafiado para um duelo mortal, convida todos para beber um copo de vinho na taverna de sua mãe e canta um elogio ao vinho: “Viva il vino spumeggiante!” (não se trata de um espumante, mas sim de um vinho muito jovem, rústico, artesanal, bebido diretamente dos barris). Sugestão: vinho tinto jovem.

Felicidade

Qual o segredo para ser feliz? Quem nos ensina é Maffio Orsini de Lucrezia Borgia (1833, de Gaetano Donizetti). Quando na festa da Princesa Negroni o melhor vinho é servido, uma velha ânfora de vinho de Siracusa (Sicília), o jovem herói levanta sua taça e canta o belo “Il Segreto per Essere Felice” (O Segredo para Ser Feliz): levar a vida sem se preocupar com o futuro, bebendo vinho com os amigos. Sugestão: vinho da Sicília, Itália.

Shakespeare não compunha óperas, mas suas peças foram adaptadas. Em Hamlet (1868, de Ambroise Thomas), ouviremos a belíssima “Ô Vin Dissipe la Tristesse” (Ó, vinho, dissipa a tristeza que pesa sobre o meu coração). Já em Macbeth (1847, de Verdi), no banquete em que Lady Macbeth comemora sua coroação como rainha, junto à nobreza da Escócia, ela canta “Si Colmi Il Calice di Vino Eletto” (Encham-se as taças com o vinho escolhido). Sugestão para Shakespeare: vinho tinto clarete, mais típico de sua época.

Chega o momento em que o vinho é o personagem principal da ópera, L’Elisir  D’Amore – O Elixir do Amor (1832, de Donizetti). Nela, o vinho é fonte de prazer, alegria e felicidade, sendo encarado como verdadeiro remédio espiritual capaz de consolar o homem em meio às misérias do cotidiano.

O Dr. Dulcamara, um grande charlatão, viaja pelas aldeias italianas vendendo seu miraculoso remédio aos ingênuos camponeses e apresenta seu elixir como algo capaz de curar todos os males: epilepsia, asma, dor de dente, rugas etc. Mas as garrafinhas só contém vinho de Bordeaux e, por isso mesmo, alcança enorme sucesso. Afinal o remédio é gostoso e dá um efeito legal em quem utiliza.

O herói dessa peça é Nemorino, que pede ao charlatão a mesma poção de amor tomada pela rainha Isolda (do romance Tristão e Isolda). Dulcamara, sem pestanejar, vende-lhe a garrafa de Bordeaux, dizendo ser a poção mágica do amor. Dulcamara e Neporino cantam então o divertidíssimo dueto “Voglio Dire Lo Stupendo Elisir”. Sugestão: vinho Bordeaux.

Ópera brasileira

Não vamos nos esquecer dos vinhos fortificados. Primeiro com Séguedille da ópera Carmen (1875, de Georges Bizet), que fala do vinho branco seco Jerez Manzanilla.

Como falar de ópera no Brasil e não lembrar de O Guarani (1870, do brasileiro Carlos Gomes)? Na ária “Canzone dell’Aventuriere: Versate Il Porto…”, o explorador Gonzalez oferece Vinho do Porto aos seus comandados para que nada temam, nem mesmo a morte. Sugestão: vinho do Porto Ruby ou Tawny.

O vinho de sobremesa não foi esquecido, está em O Morcego (1874, de Johann Strauss), quando uma condessa húngara num baile de máscaras, em Viena, evoca sua terra natal ao olhar o brilho e o fogo aprisionados num cálice de Tokay. Sugestão: vinho Tokay.

Ainda em O Morcego, há uma grande celebração do vinho, em especial do champanhe, quando canta-se “Sua majestade o champanhe é rei, deixe-nos ser embalados pelo seu tom”, mas o espumante também é responsabilizado por todas as desgraças dos personagens – ”O Champanhe foi o motivo para todos nós termos sofrido hoje”.

“Que bebida, que licor! A doçura e o sabor alegram o coração. Venham beber, viva Baco, viva o vinho e o tabaco, viva ainda o armazém!”
(“L’Incontro Improvviso”, de Joseph Haydn)

La Bohème

Em Pagliacci (de Leoncavallo), o palhaço Canio é convidado a beber vinho antes de sua apresentação. Outra ópera em que o vinho perpassa diversas cenas é La Bohème, de Puccini.

Você beberia o vinho do diabo? No Fausto (de Gounod), Mefistófeles rejeita o vinho oferecido pelos cidadãos que festejam e resolve oferecer o seu próprio. Quando tudo parece perdido e na vida só lhe restam amarguras, o vinho pode dar ânimo, como deu para Falstaff (de Verdi), quando o gordo cavaleiro sai molhado e enlameado do Rio Tâmisa e afunda-se numa cadeira do lado de fora do Garter Inn, sua taverna favorita. Ele pede um copo de vinho quente. Enquanto bebe, canta a um maravilhoso vinho.

No Ato I de Otello (de Verdi), o compositor aproveitou o momento para gravar a relação tensa entre Iago e Cássio:

“Iago – Beba bem, beba antes que a música e o copo desapareçam.
Cassio – Este verdadeiro maná da videira, com visões encantadoras obscurece a morte.”

Vinho presente

No Rapto do Serralho (de Mozart), o herói, Pedrillo, tenta fazer com que Osmin, o grande homem de confiança do paxá, bêbado, possa libertar seus companheiros de viagem. Ele tenta Osmin com vinho, que sucumbe. Os dois cantam um dueto engraçado: “Vivat Bacchus!”.

“Uma disposição alegre e vinho adoçam a pior escravidão… Isso é o que chamo de bebida para os deuses. Viva Baco! Baco que descobriu o vinho!”

Vamos encerrar com mais um brinde, o Brindisi da ópera La Traviata (1853, de Verdi). “Libiamo, libiamo, ne’ lieti calici”. Em uma festa, tarde da noite, quando Alfredo tenta cortejar Violetta, ele canta um hino à bebida e ao amor. “Bebamos, bebamos deste cálice de alegria. Isto reforça a beleza… Ah, bebamos! Nossas bebidas tornarão nossos beijos mais ardentes!” Sugestão: espumante Prosecco.

O que Giuseppe Verdi bebia? “Chianti, nada além de Chianti, Chianti!”, escreveu sua esposa, a grande soprano Giuseppina Strepponi.

Nós bebemos a isso, a essa história certa, contada da maneira certa, na hora certa. E, se não terminarmos a garrafa, faremos como Verdi fez em seu restaurante favorito. Vamos escrever nossos nomes em um pedaço de papel, enrolá-lo, colocá-lo dentro do gargalo da garrafa e voltaremos amanhã, para outro copo. Seguindo a sugestão de Aguinaldo Záckia Albert, inspiração para este artigo, finda a cantoria, vamos combinar de comer uma bela pasta acompanhada de vinho tinto, que ninguém é de ferro…

E você, tem uma cena favorita de vinho em uma ópera?

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