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Perdi um irmão para as drogas. Respeite a dor de Fábio Assunção

A reação ao episódio da prisão do ator é assustadora. Por que nos tornamos abutres dos que estão em agonia?

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Fábio Assunção
1 de 1 Fábio Assunção - Foto: Reprodução

Recebi o vídeo do ator Fábio Assunção preso na viatura e visivelmente transtornado. Com a mídia compartilhada, havia uma mensagem que se regojizava da tragédia alheia e anunciava aos foguetes: “Não precisamos bancar essa escória drogada”. A frase era seguida do chamado para eleger um presidenciável que tem abertamente ideias fascistas como a “higienização social”.

Há tempos que perdemos a humanidade. A tecnologia nos serviu para mostrar o quão o homem é genial e medíocre ao mesmo tempo. Pessoas que se dizem religiosas pregam o desamor diário e esquecem o mandamento mais poético e utópico de todos: “Amai ao próximo como a si mesmo”.  Outros que se nutrem do ódio como o pão diário aplaudem ações questionáveis, como a da Prefeitura de São Paulo em relação à Cracolândia.

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Perdi um irmão para as drogas (ilícitas e, em recaídas, lícitas). Uma vida ceifada desde a adolescência. Eu ainda era menino quando ele entrou transtornado em casa. Acordei naquela madrugada com o coração aos pulos. Acho que deveria ter uns 10 anos. Tive medo. Minha mãe chorava. Meu pai tentava acalmá-lo em vão. Os gritos do meu irmão drogado ainda estão em mim. Minha irmã de criação me segurou na cama. Fui acalmado por aquela mulher doce. No dia seguinte, fiquei em choque ao ver a sala da casa destruída. Tudo em cacos.

Meu irmão era a melhor pessoa da minha família. Sensível, doce, amava as artes. Foi com ele que aprendi a ouvir música de qualidade. Ele comprava vinis antes de chegar às lojas em mãos de representantes. Lembro-me de conhecer faixa a faixa os primeiros discos de Zizi Possi, Fafá de Belém, Joanna, Marina, Ângela Ro Ro, Alcione, Elba Ramalho, Belchior e Zé Ramalho.

Ele também curtia o rock americano: Led Zepellin, ACDC, Metallica e Pink Floyd. Minha mãe tinha pavor desses discos porque quando ele entrava em surto colocava o som nas alturas. Quando dormia, drogado, eu vinha de fininho abaixar o som. Às vezes, ele acordava e gritava: “Seu (assim que ele me chamava), não mexe nessa porra”.

Foram anos de pânico, dor e desesperança. Eu ainda tentando entender o mundo e meu irmão querido se matando lentamente diante de todos nós. Era como se fôssemos tragados juntos em sua agonia. É muito triste constatar que meu irmão teve a carreira destruída (ele chegou a ser chefe de circulação de um grande jornal baiano), acabou com o casamento, distanciou-se das duas filhas e de nossa casa (havia iminente risco de agressão aos nossos pais).

Minha mãe, que segurou nos ombros um sofrimento incalculável, sempre esteve por perto dele como o seu anjo da guarda. Alugou uma casa para ele ficar e diariamente estava lá para cuidá-lo. Perco a conta das vezes que fomos resgatar meu irmão nas ruas, caído como um saco de lixo. Não havia vergonha alguma naquele ato. Minha mãe tinha a nobreza de ampará-lo e acho que essa imagem eu não vou esquecer nunca.

Eu vi meu irmão perder seus amigos de juventude um a um para as drogas. Tinham dois irmãos que foram tragados pelo vício. Por algumas vezes, o meu foi internado. Infelizmente, teve uma overdose no verão baiano de 2000 e não voltou mais.

É uma sensação de fracasso não ter visto meu irmão sair das drogas. Mas é um sentimento de orgulho imenso saber que minha mãe não o abandonou um segundo sequer, mesmo vilipendiada pela violência que a droga lhe impunha. Meu irmão morreu sabendo que era profundamente amado. Não foi jogado debaixo do tapete como um lixo inconveniente.

Não é fácil escrever sobre esse episódio, mas não há como ficar impassível aos abutres que querem dissecar o corpo vivo de Fábio Assunção e de milhares de anônimos sucumbidos pela doença das drogas. Eliminar essas pessoas para fora do convívio é não entender que ninguém está ali porque quer estar. Fábio e tantos outros precisam de um olhar de carinho, uma mão estendida, um abraço forte, um gesto de solidariedade sequer.

 

 

Lembro-me muito de um depoimento de Nelson Gonçalves sobre como a droga devastou a sua vida e como surgiu o renascimento para a vida artística. Outro dia, recebi esse vídeo e fiquei em prantos. Nelson conseguiu virar um jogo que parecia perdido. Meu irmão e centenas de outros usuários, não.

Por que acabar com a vida de Fábio Assunção se ainda existe tanta vida? Por que desistir de quem está na rua pedindo socorro se ainda existe esperança?

Fui uma vez à Cracolândia de São Paulo, vi um trabalho brilhante de religiosos e senti orgulho desses que fazem a Bíblia ganhar um sentido poderoso. Havia um homem, do qual não recordo o nome, que tentou tirar o meu irmão das drogas por meio de sua crença. Acompanhei o amor dele por meu irmão, que lhe era tão estranho e tão próximo ao mesmo tempo. Infelizmente, ele também não teve êxito.

Não somos só cidadãos que pagam impostos e querem levar a vida comum e ordinária rumo à morte. Somos seres humanos que nos importamos com o outro. Não podemos ver o outro jogado na arena da vida e comemorarmos como se fôssemos bárbaros. As Cruzadas da Idade Média e, em nome de verdades, deixaram um rastro de sangue. Sejamos humanos, vamos limpar os rostos dos que estão momentaneamente caídos.

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