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Martha Nowill: “A maternidade é uma espécie de prisão”

Em entrevista, a atriz Martha Nowill fala sobre sua nova peça, em que vive a escritora Pagú, e a experiência de ser mãe de gêmeos

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1 de 1 imagem colorida - martha nowill - Foto: divulgação

Há 20 anos, o colecionador de arte Rafael Moraes guardava o manuscrito “Até onde chega a sonda”, escrito por Patrícia Rehder Galvão, a Pagú, musa do movimento Antropofágico criado por Oswald de Andrade. O texto foi escrito quando a escritora estava presa, em 1939, durante a ditadura de Getúlio Vargas e nunca foi publicado. Quando conheceu a atriz Martha Nowill, em um bar, Rafael percebeu que ela era a pessoa certa para apresentar aquele manuscrito ao mundo.

“Que loucura! Ele tem um texto inédito da Pagú e quer me mostrar? Eu tirei a sorte grande”, pensou Martha. Esse foi só começo de uma série de coincidências que uniu a atriz à escritora. Foram precisos quatro anos, uma gestação de gêmeos e um puerpério para que ficasse pronta a peça “Pagú – Até Onde Chega a Sonda” – em cartaz até 18 de dezembro no Sesc-Pompeia, em São Paulo.

“É muito lindo ser mãe, é a melhor coisa que eu já fiz na vida. Mas também é uma espécie de prisão. Não tem nada a ver com a prisão da Pagú, que era política e onde ela foi torturada. É um outro lugar”, diz a atriz.

Um lugar, entretanto, em que essas duas mulheres se encontram depois que Martha deu a luz aos gêmeos Maximilian e Benjamin, de um ano e 11 meses. Desde de 2018, a atriz já estava trabalhando na ideia de transformar o manuscrito em peça. Mas só depois de ser atravessada pela maternidade, assim como Pagú foi pela prisão, que Martha conseguiu materializar o conteúdo do texto da modernista em expressão cênica.

“Eu fiquei quatro anos pensando em quem eu ia chamar para escrever. Mas no final quem tinha de escrever era eu mesma”, assume.

No monólogo, Martha vive duas personagens: a Pagú e uma atriz que está no puerpério. As vivências da escritora na prisão se conectam com as da mulher que está conhecendo a maternidade. Para Martha, o seu texto faz um contrapeso ao manuscrito.

“Quando a gente fala da Pagú vem uma densidade, um lirismo, mas a peça é muito bem humorada. Pra mim, o humor é tão importante quanto respirar”, afirma.

Confira os principais trechos da entrevista

Qual foi o primeiro contato que você teve com a história e a obra da Pagú ?
A primeira vez que eu ouvi falar dela foi uma informação muito rasa, no meu período de formação: uma mulher, que foi musa, recitou um poema no Theatro Municipal, se casou com o Oswald [de Andrade] e entrou para o Partido Comunista. Era muito clichê. Eu tinha com ela uma relação de muita admiração e até um certo deslumbre. Mas uma ideia meio equivocada, meio mítica de musa do modernismo – aquele Google que a gente dá para ver as imagens e aparece aquela mulher com aqueles olhos. Mas eu já tinha uma conexão com essa personagem. Toda vez que eu ouvia o nome dela me dava um negócio.

Como você teve acesso a esse manuscrito inédito dela? E qual foi sua primeira impressão?
Eu conheci o Rafael numa noite, em um bar, em 2018. Ele me olhou e disse “Você tem uma coisa da Pagú . Quero mostrar uma coisa dela”. Eu pensei “que loucura, ele tem um texto inédito da Pagú e quer me mostrar? Eu tirei a sorte grande”. Ele tinha esse texto há muitos anos e estava querendo mostrar  para alguém. Uma semana depois, o Antonio Martinelli, gerente do Sesc, me ligou dizendo que teria uma comemoração do bicentenário da Independência do Brasil. Eles queriam colocar alguns personagens declamando uns textos no jardim do Museu do Ipiranga, e tinha pensado que eu poderia fazer a Pagú. Quando isso aconteceu, eu tentei marcar um encontro o mais rápido possível com o Rafael para ver o manuscrito. Quando eu li o texto pela primeira vez achei que não ia rolar. Não é uma peça. A Pagú não escreveu para ser uma peça. Tinha muita coisa valiosa, mas não estava pronto para ser encenado.

E como foi o processo de transformar o texto em uma peça?
Eu queria transformar esse texto em peça. Mas eu queria fazer só a Pagú. Não queria me colocar na peça. Mas eu precisava criar uma história – talvez alguém que tivesse presa com ela. Os anos foram se passando, veio a pandemia, eu engravidei de gêmeos. Mandei o texto para algumas pessoas, mas não encontrei ninguém que quisesse fazer comigo. Quando meus filhos estavam com cinco meses, eu pensei: preciso fazer esse texto. Escrevi o projeto e a primeira pessoa com quem eu falei foi com a Isabel Teixeira. Embora eu quisesse chamar alguém para fazer comigo, a Isabel achou que era um monólogo. E comecei a desenvolver o texto em um processo que a Bel chama de “escrita na cena”.

Você poderia explicar como é esse processo?
A Isabel me pediu para gravar vídeos da vivência do meu dia. Mas eu não queria mais falar de mim, eu queria falar de outras pessoas. Mas ela ponderou: “não é para falar de você, é para falar a partir de você”. Eu comecei a gravar e a Isabel transcreveu os vídeos e fez algumas análises. A partir desses textos eu escrevi a peça e inseri os trechos do texto da Pagú que faziam mais sentido e dialogavam com o meu texto.

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Como foi para você esse processo de escrever uma peça?
Eu fiquei quatro anos pensando em quem eu ia chamar para escrever. Mas, no final, quem tinha de escrever era eu mesma. Eu escrevo muito. Minha ocupação principal sempre foi de atriz. Mas já escrevi alguns roteiros de longa e curtas metragens, já escrevi para revista, já escrevi poesia – inclusive já publiquei um livro de poemas – e vou publicar um livro no próximo ano. A palavra, escrever, para mim, não é algo distante. Eu me considero escritora, mas essa é a minha primeira peça.

A Pagú escreveu o texto na prisão. Você estava com filhos pequenos e vivendo o confinamento da pandemia. Há relação entre esses dois momentos?
O puerpério e a maternidade também são uma espécie de prisão. Uma prisão maravilhosa. Mas, no começo, você acha que nunca mais vai sair dali. Eu passava 10, 11 horas por dia amamentando. Mesmo depois que as mamadas diminuíram, no primeiro um ano e meio, você fica muito mergulhada naquela rotina com a criança. E, ao mesmo tempo, você quer voltar para sua vida, mas você não quer faltar para os seus filhos. Tem um lado seu que fica muito sufocado. É muito lindo ser mãe, é a melhor coisa que eu já fiz na vida. Mas também é uma espécie de prisão. Não tem nada a ver com a prisão da Pagú, que era política e onde ela foi torturada. É um outro lugar. Mas quando você assiste a peça esses lugares dialogam de uma forma surpreendente.

Depois de estudar sobre a Pagú e escrever a peça, como você a vê?
Como uma mulher muito à frente do tempo dela. Uma mulher que foi escanteada da história – por mais que se fale dela. Ela tem mais de 20 anos de produção em que escreveu crônicas, críticas, traduziu muitos textos e revelou muitos autores novos de teatro. Era uma mulher que via longe. Depois de estudar a vida dela, eu entendi que a Pagú teve esse começo de vida muito glamuroso, mas depois tudo foi muito sofrido. Ela não fazia nada pela metade. Foi a fundo no jornalismo, depois a fundo no teatro, na política. Lendo suas crônicas, eu vejo que a Pagú não tinha muita diplomacia. Falava o que pensava mesmo. Mas viveu numa época muito machista do que é agora. Se um homem tivesse as mesmas atitudes ousadas seria bem visto. Mas uma mulher, não.

Vocês duas têm algo em comum?
Pelo que eu sinto, existe uma intensidade. A Pagú dizia: “pode me achar ridícula, toda minha vida tem sido ridícula”. Ela não tinha medo dessa profundidade, ela não tinha medo do ridículo. Eu sinto que sou parecida com ela nesse lugar, nessa intensidade.

PAGÚ – Até Onde Chega a Sonda
Sesc Pompeia: rua Clélia, 93, Pompeia – São Paulo. Site: sescsp.org.br/pompeia. Até 16/12

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