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Coronavírus pode não matar, mas quebrar saúde pública, diz médico

Embora o novo coronavírus e a Covid-19 não sejam um grande problema de saúde individual, são enormes problemas de saúde pública

Médico infectologia Alexandre Cunha

atualizado

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Nos últimos dois meses, uma epidemia está se alastrando entre nós: a epidemia do medo. Medo do desconhecido, medo do “novo”, medo do incerto. É preciso, então, que fique clara a mensagem de que o “novo coronavírus” (agora denominado SARS-Cov2) não oferece risco significativo a você ou a seus filhos. A doença não tem uma fração da gravidade que o imaginário popular percebe. Pode-se então perguntar o porquê de toda essa mobilização de países e da OMS sobre o tema. A razão é que, embora o SARV-Cov2 e a doença provocada por ele, a Covid-19, não sejam um grande problema de saúde individual, eles são um enorme problema de saúde pública. Mas qual a diferença?

Do ponto de vista de saúde pública, as medidas drásticas que vêm sendo tomadas por governos (quarentenas, cancelamento de eventos e aglomerações, fechamento de escolas, planos de contingência) fazem todo o sentido. São medidas adequadas e necessárias em alguns cenários. Elas visam diminuir a velocidade com que a epidemia se alastra, de modo que os serviços de saúde consigam absorver toda a demanda. Sendo um vírus novo, para o qual não há vacina ou imunidade prévia de parte da população, o universo de susceptíveis é enorme, o que gera número exponencial de novos casos em um período curto de tempo. Esses novos casos, ao buscarem assistência médica, demandam recursos e pessoal em quantidade que, muitas vezes, supera a capacidade dos serviços de saúde. E é exatamente esse o grande risco dessa epidemia: com serviços superlotados, portadores da minoria de casos graves e mesmo de outras doenças, crônicas inclusive, podem ter seu prognóstico piorado pela lotação dos serviços de saúde com os portadores do novo vírus, que podem se tornar incapazes de atender adequadamente os mais necessitados. Portanto, o sistema pode entrar em colapso. Talvez isso explique o número de mortes na Itália, mais de 10 vezes acima da média de outros países da Europa.

Um grande número de contaminações em curto período de tempo, somado à histeria da população pela percepção irreal de gravidade na maioria dos casos, leva os cidadãos a procurarem desnecessariamente os serviços de saúde. Mortalidade aumentada é o resultado. Assim, pensando em saúde pública, no sistema como um todo, a OMS, o CDC, o Ministério da Saúde, as Secretarias Estaduais de Saúde e os gestores de hospitais públicos e privados têm todos os motivos para se preocuparem. Medidas precisam ser tomadas para que a epidemia venha “em prestações”, de modo que o sistema suporte esse novo agravo. No Brasil, devemos ter, nos próximos meses, dezenas de milhares de casos. Mas com gestão adequada dos recursos, essa epidemia pode passar como várias outras que já enfrentamos.

Já do ponto de vista de saúde individual, isto é, pensando em cada um de nós, no risco que a infecção pelo vírus representa a cada um, pode-se dizer que este é mínimo. Os dados comprovam isso. Basta um pouco de racionalidade, fugindo da histeria coletiva que toma conta dos jornais e grupos de WhatsApp e encontrando abrigo em dados científicos, para vermos o quanto a percepção de risco pelas pessoas está distorcida. À medida em que a pandemia evolui, conseguimos ver com clareza que esse novo vírus não é muito mais perigoso do que outros vírus respiratórios com os quais já estamos acostumados em termos de morbidade e mortalidade e atinge, em especial, idosos e pacientes com outros problemas de saúde, exatamente como o influenza, por exemplo.

Vamos aos fatos: primeiramente, é necessário entender que os dados estatísticos de Wuhan, na China, não refletem a realidade epidemiológica da infecção. Isso ocorre porque, em todo início de epidemia, são notificados somente os casos graves (porque são eles que chamam a atenção para um novo problema). Isso constitui um viés de seleção, no qual milhares de pacientes portadores do vírus, assintomáticos ou com sintomas leves, simplesmente não entram nas estatísticas. Quando se analisam somente os casos internados ou apenas os que buscaram assistência médica, obviamente a doença parece muito mais grave do que realmente é. Seria como estimar a mortalidade de acidentes automobilísticos analisando somente o desfecho das pessoas internadas em UTI após o acidente.

Sabe-se, por novos estudos, que um terço das infecções pelo SARS-COV2 são absolutamente assintomáticas e que a grande maioria dos sintomáticos tem uma doença branda, como resfriado comum. Apenas pequena parcela tem quadro mais sintomático, e os casos graves são, na maior parte, em pacientes já debilitados ou com outras doenças. Hoje, os dados de países que fizeram notificação não só dos pacientes em situação mais grave mostram que a mortalidade inicial estimada entre 3% e 5% na China, na verdade, é mais próxima de 0,1% e 0,2% e menos do que isso em crianças e adultos jovens sem comorbidades. Crianças em especial, parecem ser curiosamente (e felizmente!) um grupo “protegido” da Covid-19, com mortalidade 0% (zero!) mesmo nas coortes de milhares de pacientes da China. É verdade que idosos são o maior grupo de risco para Covid-19. Mas eles são o maior grupo de risco para qualquer infecção e também para qualquer doença não infecciosa. Na China, até início de fevereiro, 208 idosos acima de 80 anos haviam morrido em decorrência da Covid-19, em uma população de 26 milhões de idosos. No mesmo período, faleceram 150 mil idosos de outras causas quaisquer. Portanto, a chance de um idoso falecer em decorrência do SARS CoV2 no pico da epidemia e no país mais atingido foi 720 vezes menor do que de falecer em decorrência de qualquer outra razão. Se você tem um idoso com mais de 80 anos em casa, a chance deste falecer por Covid-19 é muito menor do que a de ele falecer por outros motivos.

Mais alguns números para trazer um pouco de razão ao assunto (números do dia 9/3/20):
– Covid-19 matou 4 mil pessoas em todo o mundo. A influenza (gripe “comum”) matou 65 mil pessoas nos Estados Unidos em 2018.
– Na Itália, houve 463 mortes por Covid-19. No ano passado, houve mais de 700 mortes por dengue no Brasil.
– Na Alemanha, no inverno rigoroso, com temperaturas abaixo de 10 graus e a população idosa, há atualmente 1.176 casos e 2 óbitos, mortalidade menor do que 0,2%.
– Suécia, Noruega, Áustria, Singapura e Malásia têm, somadas, 1.349 casos e nenhum óbito.

Como pode-se perceber, não há razão para alarde, paranoia ou histeria. As autoridades de saúde, sim, têm um enorme desafio nas mãos, mas, para o cidadão comum, essa é mais uma doença viral. Quanto às medidas de restrição de viagens, de quarentena, de cancelamento de eventos e aglomerações ou até mesmo o fechamento de escolas, o melhor a se fazer é seguir as orientações dos órgãos oficiais (Ministério da Saúde e Secretaria Estadual de Saúde) e da Sociedade Brasileira de Infectologia. Esses órgãos possuem pessoal qualificado para tomar as melhores decisões, baseadas em critérios técnicos e no interesse de toda a sociedade.

P.s.: Nessa quarta-feira (11/03/20), o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, baixou decreto suspendendo as aulas por 5 dias. Tal medida, neste momento epidemiológico, não encontra respaldo em critérios técnicos, não tem nenhum impacto positivo no controle da epidemia e pode, inclusive, passar à população a impressão de maior gravidade da situação, podendo levar ao aumento de procura pelos serviços de saúde e, em última análise, agravar a epidemia.

 

Alexandre Cunha é médico infectologista dos hospitais Sírio Libanês e Brasília; consultor médico do Sabin Medicina Diagnóstica e vice-presidente da Sociedade de Infectologia do DF

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