“Porcos são tratados melhor que escravos”








Quando avistou a porteira da fazenda abrindo, Raimundo Nonato da Silva viu a esperança de liberdade chegar. Escravizado em uma propriedade rural no Maranhão, onde nasceu, ele dormia e acordava junto com porcos, à espera do dia em que escaparia dali. A libertação, porém, apareceu como uma miragem no deserto.

Entre 2005 e 2012, Raimundo foi resgatado três vezes no Maranhão e uma no Pará, todas em endereços diferentes. Em outras quatro situações, acabou servo de fazendeiros, em pleno século 21. Devido à pobreza, aceitou seguidas propostas laborais que revelaram-se armadilhas para exploração criminosa. O aliciador é conhecido como “gato”, pessoa que vai até uma cidade, geralmente pobre, sem asfalto, rede de esgoto e carente de empregos, para levar trabalhadores a outras regiões.

O maranhense saía de casa para receber salário em troca de serviços como roçagem – com uma enxada, tirava o mato do chão no intuito de fazer crescer o pasto, porque dele o gado poderia alimentar-se. Ao fim do mês, Raimundo não recebia nem um centavo. “Até a foice pra trabalhar era descontada do meu salário, pagava caro pela comida estragada. Não sobrava nada”, lembra.

Ele nunca esquecerá o cheiro da carne podre de cor azulada servida no jantar em uma das propriedades. Tampouco sairão de sua mente os anos em que bebia a água empoçada, no chão, junto aos animais, que ali também faziam suas necessidades.

Igo Estrela/Metrópoles

“Vivia com febre. Tomava aguardente como remédio, só tinha isso”, relata. Ir embora não era uma opção: em todos os lugares, havia seguranças armados que ameaçavam matar quem tivesse “dívidas” e fugisse. “Tudo era feito de um jeito que a gente devesse dinheiro sempre.”

Raimundo começou a trabalhar aos 6 anos. “Talvez mais cedo, já não me lembro”, corrige-se. Quebrava dois quilos de coco por dia, os quais não conseguia carregar sozinho. A mãe o ajudava na tarefa. Ele chegou a frequentar a escola por poucos meses e nunca aprendeu a assinar o próprio nome. “Conheço as letras, mas não sei juntar. Pra conseguir qualquer trabalho, preciso ter cursos e eu não fiz nada”, explica.

O expediente começava às 5h, só com um café preto no estômago. Às 12h, pausa para “almoçar” a carne podre. Capinavam até as 18h, muitas vezes dormiam sem jantar, às vezes num galpão sem camas, outras no meio do mato. “É um horror você pegar na enxada até perder as forças e não ter sossego nem pra dormir”, lembra Raimundo.

Ele jamais recebeu indenização por dano moral, prevista em lei em casos de trabalho análogo à escravidão. Depois do resgate, teve pago o salário devido, por intermédio das equipes de fiscalização, e acesso ao seguro-desemprego, que durou três meses. Após cada libertação, voltava para casa, até que o recurso acabava e era obrigado a aceitar qualquer oferta. Atualmente, o maranhense vive de benefícios do governo e da pesca, mas passa dificuldades.

Nem sempre há o que comer. Ele mora em Juçareira (MA), área rural onde chega-se apenas de barco. Ali quase não existe comércio e não tem escola, transporte público nem hospital. Raimundo só deixou de aceitar novas propostas que poderiam resultar em escravidão após conhecer o trabalho da organização não governamental Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Carmen Bascarán, criada em Açailândia (MA), que capacitou vítimas de exploração para evitar reincidências.

“Nem sei te dizer o que precisa mudar pra isso parar de acontecer por aqui. É tanta gente nessa situação que não dá esperança”

A terra natal de Raimundo, o Maranhão, é o estado com maior número de escravos resgatados Brasil afora. De todos os encontrados em fiscalizações feitas de 2003 a 2018, 22,5% nasceram nesse local, segundo levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), com base em dados do seguro-desemprego oferecido a quem vive essa situação. Em seguida, entre as naturalidades, estão Mato Grosso (9,7%) e Pará (8,5%). O perfil predominante é analfabeto, com menos de 40 anos e negro (preto ou pardo).

Procuradores e auditores do Trabalho, representantes de movimentos sociais e pesquisadores acadêmicos explicam por que, afinal, o Brasil ainda alimenta o círculo vicioso da servidão e os atos do passado assombram o presente.

“Em 1888, a princesa Isabel assinou a abolição, mas ‘esqueceu’ de assinar a carteira de trabalho. Não houve política pública e essas pessoas passaram a viver de bicos ou permaneceram escravizadas”, explica a historiadora da Fundação Getulio Vargas Ynaê Santos, doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro História da África e do Brasil Afrodescendente.

Com a abolição, o país começou a estimular a imigração para substituir a força de trabalho escrava. “Desejava-se criar uma civilização nos moldes europeus, com políticas para branquear a população. Daí os incentivos para que italianos, portugueses e espanhóis viessem”, diz a doutora.

Na Primeira República, negros libertos continuaram preteridos da educação e do emprego formal. Ocorreu a manutenção das relações escravistas, mesmo sem a escravidão existir legalmente. “Não houve nenhuma preocupação em se preservar essa memória. Tudo foi feito em nome e nos moldes de uma sociedade que se queria branca”, afirma.

“A escravidão estruturou a sociedade brasileira por quase 400 anos, não só do ponto de vista das relações econômicas mas políticas também. O Brasil lançou a escravidão para o futuro ao ser o último a aboli-la”

– Ynaê Santos, historiadora

Parte do movimento negro rejeita a celebração de 13 de maio (Dia da Abolição), pois a Lei Áurea foi retratada historicamente como uma benesse da realeza à população. “Na verdade, sempre existiu e ainda existe uma luta árdua dos negros pelo fim da escravidão, cuja história é complexa e perpassa por vários atores, das revoltas à pressão internacional”, explica Ynaê.

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