“As mulheres não são salvas do trabalho escravo”








Nasceu no Maranhão um projeto referência no combate ao trabalho escravo. Trata-se do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Carmen Bascarán, em Açailândia, a cerca de 600 km da capital, São Luís.

A iniciativa é sustentada por meio de editais do Ministério Público do Trabalho (MPT), parcerias com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e doações. O centro oferece auxílio jurídico, capacitação profissional, cursos e outros serviços aos resgatados.

Ao redor da sede do grupo, há madeireiras e carvoarias, mas o desenvolvimento econômico da região ocorreu às custas da exploração da mão de obra escrava e não se converteu em melhorias sociais.

Uma das fundadoras, Ivanete da Silva Souza, 43 anos, dedica-se há 22 anos a devolver dignidade aos trabalhadores escravizados. O primeiro homem socorrido chegou à sede do Centro Carmen Bascarán com o corpo marcado a ferro, como se fosse gado. Em mais de duas décadas, foi a única situação na qual o grupo atuou em que a vítima recebeu indenização por dano moral.

“Foi um dos casos que mais me impressionou. Hoje, Antônio Pedra tem 100 anos e já não consegue contar a própria história”, relata Ivanete.

“É preciso ensinar a essas pessoas que elas têm valor como gente. Depois de serem tratadas como objeto, muitos se esquecem disso”

– Ivanete da Silva Souza

Um dos processos nos quais o centro atua envolve a morte de dois trabalhadores: Gilberto Ribeiro Lima e Vanderlei Ferreira de Meireles. Na fazenda onde foram assassinados, havia um cemitério clandestino com dezenas de cadáveres. Esse era o fim de quem ameaçava denunciar os crimes cometidos ali.

Os dois corpos estão no Instituto Médico Legal (IML) de São Luís há seis anos, sem identificação legal, por falta de material para fazer exames. A esposa de um deles teve de entrar em um programa de proteção à testemunha, pois foi ameaçada pelos autores do crime, que estão livres e moram em Açailândia.

Deixadas para trás

Igo Estrela/Metrópoles

Todos os resgatados auxiliados pelo Centro Carmen Bascarán são homens. Segundo Ivanete, as mulheres são negligenciadas até na salvação. “A fiscalização chega e trata a mulher como trabalhadora doméstica irregular, não como escrava. Ela come comida estragada, bebe água pobre e sofre todo tipo de abuso, mas, na hora de ser resgatada, é deixada para trás”, diz.

Desde que o Ministério do Trabalho foi extinto, as atribuições da pasta foram distribuídas entre três órgãos: da Justiça, da Economia e da Cidadania. O cenário de incerteza preocupa quem, há décadas, combate o trabalho escravo.

O coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo na Comissão Pastoral da Terra (CPT), frei Xavier Plassat, teme prejuízos à fiscalização. Para ele, a atual gestão demonstra desconhecer o conceito de trabalho escravo quando usa o mesmo termo para se referir aos médicos cubanos com os quais o Brasil não trabalha mais. “Este governo se recusa a considerar como escravo os que são realmente escravos no Brasil. É uma situação absolutamente assustadora. O discurso deles fundamenta-se sobre a defesa da propriedade e a proteção dos empregadores”, explica.

“O fIm do Ministério do Trabalho é uma porta aberta à exploração. Algo ainda mais brutal do que o descaso visto nos últimos anos”

– frei Xavier Plassat, coordenador da CPT

Especialistas apontam cortes no orçamento e falta de pessoal como principais consequências negativas após o fim do ministério. A Lei Orçamentária Anual reservou R$ 3,2 milhões para ações de fiscalização em 2017. Somente R$ 1,6 milhão foi investido pelo governo Michel Temer, devido a ajustes fiscais.

Até 2012, o combate ao trabalho escravo tinha verba específica. Desde então, por decisão do governo Temer, as despesas se diluíram no orçamento do extinto Ministério do Trabalho.

“Isso deu liberdade para o chefe da pasta fazer o que quisesse. Em 2017, o então ministro Ronaldo Nogueira determinou um corte de 70% no dinheiro destinado ao combate ao trabalho escravo, enquanto o ministério, de forma geral, teve 50% de contingenciamento”, afirma o presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), Carlos Silva.

Após os cortes orçamentários, faltam, por exemplo, passagens aéreas para ir aos locais onde há suspeita de exploração de trabalhadores. Em janeiro do ano passado, uma fiscalização no Acre foi cancelada por esse motivo. Também não há verba para pagamento de diárias a motoristas.

Silva aponta ainda a falta de servidores como parte da explicação para a queda nos resultados. São 2.250 auditores em atividade e 1.350 cargos vagos. “É o menor quadro nos últimos 20 anos. Um terço do total está vazio”, ressalta.

Com isso, a probabilidade de resgatar alguém mais de uma vez diminui muito. “Essa é uma amostra de como a escravidão é estrutural e se repete quando suas causas não são combatidas”, explica frei Xavier Plassat.

Denúncia à OIT

Igo Estrela/Metrópoles

O Brasil é signatário da Convenção Internacional do Trabalho nº 81, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). No documento, há regras sobre a sistematização de inspeções do trabalho. O número de auditores deve ser compatível com as demandas de cada país. Em todo o território brasileiro, deveria haver 8 mil pessoas nessa função.

“O Sinait já denunciou o governo brasileiro à OIT três vezes nos últimos cinco anos por não nos oferecer condições para combater a escravidão moderna”, ressalta o presidente da entidade.

De acordo com o vice-coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do MPT, Ulisses Dias Carvalho, o fim dessa forma de exploração não é prioridade. Pelo menos, não desde 2014. “O grupo móvel de fiscalização já teve nove equipes. Hoje, só há quatro para fiscalizar o Brasil inteiro”, afirma.

O procurador critica a falta de políticas públicas para evitar esse crime. Segundo ele, quem deveria fiscalizar o cumprimento do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, de 2008, não exerce sua função.

“Sem fiscalização, o mundo do trabalho volta à barbárie. Instaura-se um círculo vicioso de precariedade, pobreza, exploração e falta de condições de consumo. Essa rotina destrutiva afeta o sistema produtivo nacional, com impactos nefastos sobre o desenvolvimento social e econômico do país”, diz uma carta-denúncia do Sinait sobre cortes orçamentários do setor.

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