Ela compartilhava a página do Facebook com o próprio assassino, como se eles fossem um só: “Luana Filipe”. Morreu esfaqueada pelas costas, grávida de três meses. A filha mais velha, de apenas 9 anos, fruto de seu primeiro relacionamento, viu tudo acontecer. A sogra foi quem pagou o enterro.

Cenas que marcaram o fim da vida de Luana Bezerra, de 28 anos, moradora de Sobradinho II, cidade localizada a 25 minutos do Plano Piloto.

Menos de vinte dias antes de morrer, Luana ouviu da mãe:

Elas conversavam com frequência por áudios do WhatsApp. A vítima relatava os problemas do marido com drogas e bebidas. Luana sempre teve o incentivo da mãe para voltar a trabalhar.

A jovem, mãe de quatro filhos, com o quinto a caminho, queria voltar a fazer bolos para vender e ter o próprio dinheiro:

Durante muito tempo, a mãe da vítima morou em Brasília, mas decidiu voltar para Bahia, seu estado de origem, com o padrasto de Luana. Ela não concordava com o estilo de vida da filha, que havia se envolvido com drogas, namorado rapazes que a família não gostava, além de ter quatro filhos de três relacionamentos diferentes. A guarda das crianças era compartilhada entre Luana e a mãe, que queria levá-las para morar com ela.

Última chance

Menos de dois meses antes de ser assassinada, Luana havia colocado roupas e outros objetos pessoais dentro de sacolas e bolsas. Tirou foto e mandou para a mãe, pelo WhatsApp. Estava decidida a acabar o casamento de cinco anos com Luiz Filipe Alves, que tem 20 anos. O que não aconteceu. Após o marido pedir mais uma chance, ela cedeu. Somado a isso, a sogra teria chorado e implorado para não ficar longe dos netos.

Em 10 anos, Luana engravidou seis vezes. Da primeira vez, veio Letícia, fruto de um relacionamento que não foi para frente, apesar de o pai ter assumido a criança. Rihanna, de 7, e Rian, de 6, nasceram do segundo casamento. O pai deles nunca pagou pensão e responde na Justiça por isso. Em seguida, Luana começou a namorar Filipe. Na época, ele era adolescente, oito anos mais novo do que ela. Os dois gostavam de sair juntos e de curtir até tarde da noite.

Quando engravidou pela primeira vez de Filipe, perdeu o bebê. Depois, veio Maria Louise, hoje com 1 ano e três meses. Em 2019, descobriu nova gestação, também do atual companheiro. Não houve tempo de saber se era menina ou menino.

Nem todas as crianças moravam com Luana. Letícia era a única filha de relacionamentos anteriores que vivia com a mãe. Rihanna reside com a avó desde que nasceu e Rian, o único menino, é criado por padrinhos.

Em meio à rotina de brigas com o marido, ela reclamava da dificuldade de dormir por causa da filha pequena, do cansaço da gravidez e da falta de dinheiro. Mas, para comemorar o primeiro ano da bebê, se concentrou nos detalhes da festa. Inclusive, a família usou, na ocasião, camisetas personalizadas da Minnie, escritas “Papai” e “Mamãe”. Com a Páscoa chegando, a lista de ovos de chocolate estava enorme.

Não houve tempo também para a Páscoa. No dia 14 de abril, um domingo, Luana foi assassinada.

A mãe de Luana, que pediu para não ter o nome divulgado, percebeu, na data do crime, que algo estava errado. “Ela mudou a foto do perfil”, disse ao Metrópoles. Naquele dia, postou no WhatsApp uma imagem só dela. Sinal de que a jovem, mais uma vez, havia decidido se separar do companheiro. A vítima morava em uma casa dentro do lote da família de Filipe.

A mãe perguntou o que havia acontecido. Jamais imaginaria que aquela seria uma das últimas conversas com a filha:

As duas estavam conversando sobre a possibilidade de Luana conseguir algum benefício do governo, como o Bolsa Família. A jovem não contou para a mãe que na noite anterior havia discutido com Filipe.

Ciúmes e desconfiança

No sábado, véspera do crime, por volta das 23h, o marido de Luana estava em uma bicicleta, na esquina da casa, quando gritou com a companheira: “O que é que você quer, me perturbando de novo?”. Na hora, ela estava com a filha deles no colo e disse: “Só queria entrar em casa com a minha menina”. Segundo relatos de vizinhos, Filipe teria dito: “Você ainda me paga!”.

“Filipe era muito ciumento e desconfiava que a criança não era dele”, disse uma amiga de Luana que pediu para não ser identificada. O irmão da vítima, Daniel Bezerra, de 31 anos, acrescentou: “Não tem a menor chance. Minha irmã vivia dentro de casa, passava o dia limpando. Ele chegava, o almoço já estava em cima da mesa”. Ao ser perguntado sobre o cunhado, diz: “Ele era tranquilo”.

Daniel foi uma das últimas pessoas com quem Luana conversou, eles eram muito amigos. A vítima havia ido à casa do irmão e pedido R$ 30, disse que precisava ir embora do lugar onde morava com Filipe. Na hora, Daniel, que estava com muito sono, não emprestou. Ele se arrepende disso.

Depois do crime, surgiram vários relatos sobre o casal. “Eles brigavam muito, ele gritava e batia nela”, pontuou um dos vizinhos. Eles contam ainda que apesar dos gritos da jovem no dia do assassinato, só entraram na casa quando ouviram Letícia, a filha mais velha, pedir ajuda. “Matou minha mãe!”, disse a menina, desesperada, ao correr para a rua.

Luana havia levado quatro facadas nas costas e uma no pescoço. Após servir o almoço para as filhas, a vítima retirava as roupas da máquina de lavar, quando foi abordada por trás pelo marido. Não houve chance de fuga. Ainda estava viva quando foi socorrida. De acordo com o Corpo de Bombeiros, que atendeu a ocorrência às 12h09 daquele domingo, Luana teve uma parada cardiorrespiratória, foi reanimada a caminho do Hospital Regional de Sobradinho, e, minutos depois, morreu.

Luiz Filipe está foragido até hoje. Imagens de segurança das casas vizinhas mostram o rapaz fugindo sem camisa, correndo pela rua.

PROCURA-SE FEMINICIDA

“Ninguém sabe do coração de ninguém”

Às vezes morena, às vezes loira. Luana era conhecida entre os amigos como “a diabona”. Apelido dado na adolescência por um ex-namorado. “Ela tem um passado. Já foi errada. Foi presa também, há uns três ou quatro anos. Mas minha filha tinha mudado, queria ajeitar a vida”, conta a mãe.

Tinha um sorriso bonito e alegre, que foi se perdendo com o tempo. Hoje, os amigos associam essa mudança às tristezas da trajetória de Luana, que vivia em meio a brigas com o marido por acreditar que poderia mudá-lo.

Quando Jaqueline Batista, uma amiga de infância, brigou com a mãe e saiu de casa, foi Luana quem a acolheu. Elas se conheciam desde os 7 anos de idade. “Sempre brincalhona, tirava sorriso das pessoas fácil, fácil. Ela gostava de ajudar. Se uma pessoa chegasse nela dizendo: ‘Luana, estou precisando disso’, e ela não tivesse, pedia para alguém. Tivemos muitos momentos de alegrias e de tristeza”, afirma Jaqueline.

Basília Rodrigues/Especial para o Metrópoles
Luana e a mãe conversavam por áudios do WhatsApp com frequência
Luana e a mãe conversavam por áudios do WhatsApp com frequência

Jaqueline conta que já tinha advertido Luana sobre o ciúme de Filipe. “Eu falava para ela: ‘Cuidado, nega, ninguém sabe do coração de ninguém’. Ela sempre falava: ‘Amiga, é só uma discussãozinha’. A discussãozinha custou a vida dela.”

Filipe não queria que Luana trabalhasse, principalmente depois de ter sido condenado por tráfico de drogas e porte ilegal de armas, em 2017. Grávida, Luana ia visitá-lo na prisão. Após o nascimento da filha, começou a levá-la para conhecer o pai. No ano seguinte, ele conseguiu a liberdade.

Depois do fim trágico, as mensagens trocadas entre Luana e a mãe foram guardadas para a família lembrar dela em momentos de saudade. Além de, futuramente, ajudar os filhos a entenderem por que a mãe foi embora tão cedo.

Um grupo de WhatsApp foi criado pelos amigos de Luana. Eles trocaram informações sobre o crime, o sepultamento e a vinda da mãe de Luana para o enterro, pois se cotizaram para ajudá-la. Hoje, o grupo é uma forma de manter todos unidos: compartilham orações, trocam piadas, fotos de festas e notícias sobre a violência em Sobradinho. Não raro, perguntam se Filipe já está preso. A resposta até agora é “não”.

ILUSTRAÇÃO: Facebook

Filhos

Na Páscoa, Rihanna – que recebeu esse nome por causa da cantora famosa -, ganhou um ovo de chocolate dos tios. A criança ainda não sabia que a mãe tinha morrido. Letícia está sob acompanhamento psicológico. Às vezes, fica parada, com olhar distante. Não fala da morte de Luana, mas, recentemente, teve um problema com os óculos e disse: “Minha vida está tão difícil e eu ainda quebro os meus óculos”.

A menina sofre com dermatite nas mãos, o que faz a pele descascar, deixa um aspecto rosado e dói. A reportagem do Metrópoles lanchou com Letícia e a avó, a mãe de Luana, em uma padaria de Sobradinho II. Mas, para preservar a criança, o crime que vitimou Luana ficou fora da conversa. Ela fez 10 anos, no dia 10 de maio, às vésperas do Dia das Mães.

Letícia não quis ir para Bahia, preferiu ficar com o pai. Ao contrário da pequena Maria Louise, que, assim como Rihanna, agora vive com a avó materna. Rian segue na casa dos padrinhos, a quem chama de pai e mãe, mesmo sabendo quem são seus pais biológicos.

Todo mundo erra

“Todo mundo erra sempre. Todo mundo vai errar.” A mãe de Luana repetiu o trecho de um samba que a fez lembrar da filha dias antes do crime. “Mas é mesmo que eu estar te vendo, tu escrita, quando era mais nova. Eu vejo tu nessa música”, disse à filha. O áudio ficou de recordação e ainda a faz sorrir. A música também fala de carinho, amor e ingratidão.

Horas depois do crime, o áudio no WhatsApp:

Sem retorno, no dia seguinte a mãe insistiu:

Básilia Rodrigues

Básilia Rodrigues

Jornalista graduada pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub). É repórter da rádio CBN e editora-chefe da Revista Evoke. Conquistou o Troféu Mulher Imprensa (2018) na categoria repórter de rádio. No mesmo ano, foi indicada ao Prêmio Comunique-se, como repórter de Mídia Falada. Colabora em sites sobre política e Judiciário, incluindo Congresso em Foco, Jota e Gazeta do Povo. É palestrante e publicou um especial do Unicef sobre vulnerabilidade social entre jovens.

Elas por elas

Neste 2019, o Metrópoles inicia um projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.

Até sexta-feira (07/06/2019), 7.236 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatarem abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados onze feminicídios. Segundo a polícia, apenas uma pequena parte das mulheres que vive situações de violência rompe o silêncio para se proteger.

O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.

Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.

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