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Tralhas e memórias: Vladimir Carvalho luta para doar seu acervo

Moviola usado por Glauber Rocha, câmeras, refletores e até autógrafo de Bertolucci se amontoam na casa do documentarista na W3 Sul

atualizado

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Sérgio Dutti/Especial para a Fundação Astrojildo Pereir
Vladimir Carvalho
1 de 1 Vladimir Carvalho - Foto: Sérgio Dutti/Especial para a Fundação Astrojildo Pereir

As primeiras chuvas do fim do verão do ano passado em Brasília curaram as feridas da seca, mas principalmente assustaram – e alertaram – o documentarista paraibano radicado em Brasília Vladimir Carvalho. “Estou com 87 anos, não tenho herdeiros diretos, e não posso deixar tudo isso aqui se perder à toa”, comentou ele, recentemente, com um amigo.

“Tudo isso aqui”, para Carvalho, é a Fundação Cinememória de Brasília que ele organiza desde 1994 na casa nº 73 da Quadra 704 da W3 Sul. Lá está a maior coleção de “coisas” do Distrito Federal sobre cinema. São livros e revistas históricos, moviolas quase centenárias usadas por diretores do Cinema Novo, câmeras, cartazes, refletores, mesas de montagem, prêmios e esculturas.
Sem contar as históricas e raras cartas de Mário Peixoto, autor do clássico filme O Limite – obra-prima experimental de 1930. Ou o livro de visitas à Cinemomória com assinaturas (“autógrafos”, reforça ele) de figuras como o italiano Bernardo Bertolucci, aquele que juntou Marlon Brando e a jovem ‎Maria Schneider no Último Tango em Paris, em 1972, e de Geraldine Chaplin, atriz filha de Charlie Chaplin.

Os temporais na velha casa de dois pavimentos, ampliados involuntariamente com a “ajuda” dos sobrados vizinhos, fizeram a água se infiltrar silenciosamente pelas telhas, fendas e bibocas e foi juntar à moviola que serviu para o baiano Glauber Rocha editar o filme Terra em Transe. O auditório de 25 lugares no vão superior, com acesso por escada caracol de ferro, teve as paredes manchadas, mas a tela de cinema – simplesmente uma parede branca – escapou.

Vladimir Carvalho

O auditório tem 12 anos e foi construído pelo próprio Vladimir Carvalho com o dinheiro ganho por um tradicional prêmio do Troféu Câmara Legislativa – e que foi, aliás, extinto em 2019 “por contenção de gastos”. A salinha homenageia o documentarista russo Dziga Vertov (Denis Arkadievitch Kaufman) .

Alguns raros exemplares da célebre revista Cinearte, fundada em março de 1926, escaparam, mas ficaram por dias empoeirados, às vezes “limpos” com sopros e manuseios rápidos, sempre com o dorso das mãos do cineasta. Vale lembrar: a publicação foi criada pelo visionário cineasta Adhemar Gonzaga – um dos pioneiros na organização de clubes de cinema no Brasil e que acreditava piamente que o estudo do assunto era, em si, uma arte.

Carvalho agiu rapidamente para recuperar o lugar que batizou de Fundação Cinememória: contratou dois pintores, pediu que eles retirassem tudo o que foi possível de perto das paredes úmidas e ainda pediu à vizinha da direita (sentido sul) um “cômodo” para guardar “algumas outras tralhas!”. Tralha, no Nordeste de Vladimir, é gíria para cacareco, coisa velha, alguma coisa sem serventia.

Mas, obviamente, não é algo sem valor, por exemplo, as antigas formas de barro que ficam no jardim da casa 73 da W3 Sul e que fazem referência ao filme Aruanda, de 1960 – que mostra um isolado quilombo ceramista no sertão da Paraíba. Ou a xilogravura feita pelo próprio para ilustrar o cartaz do seu primeiro longa, O País de São Saruê – produção, aliás, que Carvalho considera como gente: “Tem safena, adoece e vai até preso”. Ele se refere ao veto da famigerada censura da ditadura militar à obra, sob o argumento de que “prejudicaria a imagem do Brasil lá fora”. Esse e os longas, por razões de segurança devido à fragilidade dos negativos, estão nas cinematecas do Rio de Janeiro e de São Paulo.

A guarda, os cuidados, o zelo – e a desejada exposição permanente ao público, enfim – já preocupam Valdimir Carvalho há mais tempo, embora não de forma tão intensa quanto agora. Há 13 anos, ele teve coragem de fazer andar uma ideia: doar para a Universidade de Brasília tudo que amealhou ao longo dessa jornada. Entra ano, sai ano, passam becos, minhocões e filmes, até que as chuvas de setembro lhe deram outro aviso que não fosse só a chegada do verão: “Do jeito que está, não tenho nada”.

O primeiro reitor procurado foi José Geraldo de Sousa Junior (gestão de novembro de 2008 a novembro de 2012). O próprio José Geraldo Jr. um dia telefonou ao Vladimir: a UnB aceita a doação.

A chuva

Em seguida, veio Ivan Camargo (gestão de novembro de 2012 a novembro de 2016).  A comunidade acadêmica escolheu, então, a professora Márcia Abrahão (2016 a 2020). Chegou a pandemia, que provocou uma reviravolta na vida de Carvalho, Márcia foi reeleita e vieram os pingos de chuvas citados no início do texto.

No fim do ano passado, ele se encontrou com a reitora, Márcia Abrahão, e alguns assessores. “Estou aqui para pedir liberação para procurar outras alternativas”, contou Carvalho. “Obviamente, o deixamos à vontade. E vamos procurar, nesse intervalo, dar mais visibilidade ao acervo. Isso pode ser feito, por exemplo, dentro das comemorações dos 60 anos de fundação da universidade”, prometeu ela. O cineasta, vale lembrar, é professor emérito do lugar.

Há duas semanas, num domingo nublado pré-semana de Carnaval, o veterano documentarista foi ao espaço Cinememória para varrer o chão, espanar alguma eventual poeira. Afinal, na segunda-feira seguinte iria receber simultaneamente duas visitas importantes: o secretário de Cultura do Distrito Federal, Bartolomeu Rodrigues, e o superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Saulo Diniz.

O secretário de Cultura do Distrito Federal, Bartolomeu Rodrigues, o superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Saulo Diniz, e Vladimir Carvalho

No encontro, Carvalho – ou Vlad, como é chamado por amigos e ex-alunos – contou que o sonho era transformar o sobrado onde viveu seus últimos anos – tudo interligado, sem roteiro pré-estabelecido nuns 260 metros quadrados, com quartos, salas, cozinha e até o quintal ocupados – numa fundação de verdade: “A invenção do Cinememória foi só um estalo para receber gente, debater filmes, discutir tendências”, conta ele.

“Eis aqui o meu melhor filme”, disse ele, emocionado, aos dois visitantes – e reforçando de que Brasília não ter uma cinemateca é quase uma aberração. Afinal, é o lugar-sede do mais emblemático festival de cinema do país, das quase 200 embaixadas, de salas clássicas como o Cine Brasília e até do último cine drive-in em atividade no país.

Bartolomeu Rodrigues começou a enumerar para o próprio Carvalho algumas opções potenciais. “Temos, por exemplo, linhas específicas – como FAC Ocupação”, apontou ele, lembrando do Fundo de Apoio à Cultura. Ele se comprometeu também a fazer um levantamento sobre espaços ociosos ou que possam ser reformados.

Saulo Diniz, do Iphan, argumentou que lamentava a situação e que ali estava um exemplo do espírito criador do brasileiro e, ao mesmo tempo, da pouca valorização dada a ele. “Uma coisa é certa: não vamos deixar esse rico material se perder nem deixar sair do país”, comentou ele, provavelmente ressabiado com a transferência do acervo de 11 mil documentos de Lucio Costa, arquiteto que projetou o Plano Piloto, para a Casa de Arquitectura, em Portugal (estavam no Rio de Janeiro).

Vale lembrar que, conforme leis de tombamento, as casas das 700 só podem ser usadas exclusivamente por residências – que era o caso da 73 até o início da pandemia de Covid-19. Até hoje, no geral, é a casa do Vadlimir, com cama e cozinha. Por isso, até a plaquinha externa indicando para turistas e moradores a existência da Fundação Cinememória foi retirada. Talvez, daqui a alguns anos, só os mais velhos – e cinéfilos – lembram que lá funcionou uma cinememória.

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