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Mãe do rapper Emicida lança autobiografia: “Represento muitas Jaciras”

Em Café, Dona Jacira relembra a relação difícil com a mãe, passando pelos tempos em um orfanato até o casamento aos 13 anos

atualizado

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Demétrios dos Santos Ferreira/Divulgação
Dona Jacira – Demétrios dos Santos Ferreira 2
1 de 1 Dona Jacira – Demétrios dos Santos Ferreira 2 - Foto: Demétrios dos Santos Ferreira/Divulgação

O talento para os versos dos rappers Emicida e Fioti está no sangue. É herança familiar da matriarca, Dona Jacira, que aos 54 anos estreia no mercado literário com a autobiografia Café. “Eu sempre gostei de escrever, mas na infância tive essa minha vocação tolhida. Não aceitavam a escrita de uma criança negra, cheguei a ser expulsa da escola por isso”, conta Dona Jacira.

O desejo de passar a limpo fatos como esse, foi um dos motivadores para a enfermeira encarar o desafio de reviver feridas e resgatar lembranças difíceis da infância. “A minha história é igual a de muitas Jaciras espalhadas pelo país. Uma trajetória que eu só comecei a entender, quando passei a ler e estudar sobre a diáspora negra”, afirma.

Demétrios dos Santos Ferreira/ Divulgação
Dona Jacira casou-se aos 13 anos, aos 14 já tinha as duas filhas mais velhas. Mais tarde vieram Fioti e Emicida

 

Logo nas primeiras páginas da obra, Dona Jacira apresenta a menina “feliz e sonhadora” que foi, até ser despejada com a mãe e mais cinco irmãos da casa onde moravam. “Mesmo sem luxos, era um local afetuoso”, lembra. Sem condições de criá-los, a mãe de Jacira teve de abrir mão da criação dos filhos. “Cada um foi parar em um canto do país, só nos reencontramos anos mais tarde”. Uma das menores, a mãe de Emicida foi parar em um orfanato sob os cuidados de freiras, local onde conheceu a crueldade humana.

“Elas me batiam muito, sempre em lugares onde as marcas roxas não eram visíveis”, afirma a autora. O ponto alto da violência levou a escritora a entrar em coma, com apenas 5 anos de idade. “Sempre que via uma freira, eu piorava. As minhas memórias são cortadas, acredito que pelo trauma. Algumas coisas minha mãe me relatou já quando eu era adulta”, explica.

A escrita sempre foi um refúgio para Dona Jacira. Mas o racismo a fizeram desacreditar do seu potencial. “As professoras não acreditavam que os textos eram meus e jogavam no lixo. Daí eu resolvi fazer uma composição narrando tudo o que acontecia na escola, como eu era tratada e isso me trouxe muitos problemas”, revela.

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Segundo a autora, a ideia do livro surgiu da necessidade de entender os motivos de repetir — guardadas as devidas proporções — a história da mãe. “Casei aos 13 anos, e isso era muito normal na época, principalmente entre as jovens que não queriam fazer faxina, como eu. Aos 14 já tinha as duas filhas mais velhas, e, depois, quando vieram os meninos, também tive de me ausentar da criação deles para conseguir comprar comida”, pontua.

Com o livro, Dona Jacira procura libertar-se do passado. “A minha infância era uma coisa mal-resolvida. Eu tinha fome de ter tido uma criação diferente da que eu tive, de ter tido um pai. Foi muito difícil fechar esse ciclo, eu não precisava esquecer o que eu vivi, e sim compreender”, considera.

Um dos entendimentos de Dona Jacira durante o estudo da própria história é de que pouca coisa mudou em relação às desigualdades raciais e sociais vividas pelas mulheres negras desde a sua juventude.

“Existe, na humanidade, um ódio das mulheres que precisa ser investigado. A diferença na educação, principalmente sobre as questões do corpo, ainda permanece. A minha neta quer ter o cabelo liso igual ao da amiguinha. O mundo continua nos dizendo as mesmas coisas. Só que agora questionamos mais”, conclui.

Como toda a trajetória de vida de Dona Jacira não coube nas 440 páginas de Café, a escritora pretende lançar ainda mais um livro, com o qual contará os percalços para sustentar quatro filhos, sozinha, e ajudar na criação de cinco netos.

Reprodução
Café, de Dona Jacira. Ed. LiteraRua e Laboratório Fantasma. 440 páginas

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