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Cannes: “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão,” de Karim Aïnouz

Conhecido por filmes sensoriais, Karim Aïnouz realiza seu melhor trabalho em um “melodrama tropical”, como descreve.

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Festival de Cannes/Divulgação
A Vida Invisivel de Euridice Gusmão
1 de 1 A Vida Invisivel de Euridice Gusmão - Foto: Festival de Cannes/Divulgação

Poucas cidades do mundo podem ser fotografadas tão bem quanto o Rio de Janeiro. Contraditória em todos seus sentidos, mistura a urbanidade com a natureza, a riqueza com a pobreza, a felicidade com a tristeza. É um cenário frequente na dramaturgia brasileira, mas ninguém parece, até hoje, ter imbuído essa imagem cinematográfica com tanta textura quanto Karim Aïnouz em seu novo filme, “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”.

O fato da história se passar nas décadas de 40 e 50 faz pensar que o filme se trata apenas de uma diversão estética em adotar figurinos e decoração de época, mas nada disso é novidade, desde os velhos quadros de “A vida como ela é…” no Fantástico ou novelas inteiras que se passam em uma espécie de belle époque. O que Aïnouz criou aqui é quase uma viagem no tempo, uma janela à uma realidade, onde tudo parece real. Sua câmera não usa truques para esconder imagens anacrônicas – se uma parede oculta parte de uma rua, não se imagina que seja para esconder um prédio, apenas que a rua que estamos vendo se extende além do que a câmera vê. Tudo é composto e montado para trazer à vida a história de duas irmãs, separadas pelo patriarcado.

Eurídice (Carol Duarte) é insegura e tímida enquanto Guida (Júlia Stockler) tem o sopro de energia e entusiasmo dado aos boêmios. Inseparáveis enquanto moram juntas, com seus pais, tem um relacionamento de amor e completa intimidade. Faz sentido, pois ambas anseiam por explorar o mundo (no caso de Eurídice, tocar piano no conservatório de Viena), mas são restringidas de qualquer escolha pessoal pelo pai conservador (Antonio Fonseca). Em uma noite em família particularmente enfadonha, Eurídice ajuda Guida a fugir pela janela e ir dançar na cidade. Na volta, ela deleita a irmã com histórias de transgressões luxuriosas.

O destino lhes reserva algo tortuoso, porém, como indicado pela separação que as duas experimentam logo na primeira cena do filme, em uma mata carioca: Guida se apaixonou por um marinheiro grego e decidiu que fugirá com ele a bordo de um navio. Eurídice, como sempre, não consegue conter o plano da irmã, mas, talvez pela primeira vez, seu rosto traz um verdadeiro pesar, por enxergar ali um rompimento forte entre as duas, mesmo que geográfico. Um pouco depois vemos que esta separação será trágica para ambas, pelo resto de suas vidas.

Guida volta ao Rio de Janeiro, grávida e abandonada. Eurídice, em sua ausência, entrou em um casamento arranjado com Antenor (Gregório Duvivier), burocrata desinteressante incapaz de suscitar amor na esposa. Quando Guida chega em casa, vemos a cena mais cruel do filme: seu pai a deserda, expulsando-a de casa e mentindo sobre a vida de Eurídice, a fim de “protegê-la” da perversidade de uma solteira grávida. Guida, por sua vez, acredita facilmente na mentira, de que a irmã conseguiu entrar no tão sonhado conservatório.

Isto tudo é um mero preambulo para a história delas, sempre oprimida pelos homens que as rondam, e que ainda explora o contraste econômico social de mulheres em situações diferentes. Em quase duas horas e meia de filme o diretor retrata vidas inteiras. Não só das personagens principais mas também daqueles ao seu redor. Enquanto Eurídice tem uma vida de riqueza e despropósito, Guida é obrigada a se virar e atingir um grau de realização. Além de Duvivier como o marido, cujo personagem oscila de forma realista entre o bem e o mal (especialmente na cena de núpcias), ainda existe a presença dominadora de Bárbara Santos como Filomena, ex-prostituta com quem Guida forma uma família. “Não tradicional”, porém mais tenra e amorosa do que a biológica.

Se nada disso for suficiente para o caldeirão de um filme maravilhoso, o filme ainda guarda uma surpresa: a presença de Fernanda Montenegro no ato final. A grande dama do cinema brasileira continua presente, agora com 89 anos, aparecendo em cinco filmes na última década, além de inúmeras novelas e participações e séries de televisão. Com pouca minutagem, domina e convence na história de uma maneira surpreendente, embora discreta. Sua habilidade de formar personagens completamente diferentes uns dos outros, diferentemente de vários outros atores veteranos, que ligam o piloto automático ou se transformam em paródias de antigas interpretações, é uma prova de excelência máxima.

Avaliação: Excelente (5 estrelas)

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