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Faroeste: vídeo mostra jagunços armados ameaçando trabalhadores em fazenda no Entorno do DF

Atolada em dívidas, fazenda teria entrado como negociação do antigo proprietário com o Incra como terra destinada à reforma agrária

atualizado

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1 de 1 jagunço - Foto: Reprodução

A 20 quilômetros de Formosa (GO), o clima é de faroeste. Como em um filme, vídeo mostra homens armados ameaçando trabalhadores rurais em uma fazenda no município de Goiás. As imagens registram o momento em que jagunços da propriedade apontam armas para os assentados do Movimento Sem Terra (MST), que estão no local há oito anos.

Veja vídeo:

Após negociação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) com o antigo proprietário da fazenda, para pagar parte das dívidas dele com a União, os trabalhadores passaram a usufruir da terra, com autorização da autarquia. No entanto, o fazendeiro morreu e os herdeiros entraram em conflitos fundiários.

“Nem o Incra vai entrar”, bradou um dos funcionários da fazenda Cangalha, que não teve o nome identificado. Na cena, ele chuta o retrovisor de um carro na tentativa, segundo os assentados, de derrubar o celular de uma das pessoas que filmava a cena. Homens seguram armas de alto poder ostensivo.

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Naquela manhã, estava prevista a ida de servidores do Incra para fazer diagnóstico da área e dar continuidade ao processo de aquisição de terras, parado desde de 2019.

“A área em questão foi destinada à reforma agrária, porém, a partir de 2019, houve a paralisação de todos os processos de aquisição de terras e de criação de assentamentos. No momento, o Incra trabalha para retomar esses processos”, disse o instituto, em nota.

O Metrópoles teve acesso a um relatório do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários, do Ministério de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, a processos do inventário da família – que estima herança de R$ 207 milhões, mas com R$ 132 milhões em dívidas – e a ofício da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, que identificam o conflito.

“Achei que ia atirar”

Com o filho Ítalo, de 2 anos, no colo, José dos Santos, 43 anos, lembra o dia em que teve a arma apontada para si e para a criança. “É uma dor, um sofrimento muito grande. Eu achei que ele ia atirar na gente”, desabafou. O integrante do MST faz referência às imagens do vídeo. A cena ocorreu na madrugada de domingo (25/6) para segunda-feira (26/6), na entrada do assentamento, na Fazenda Cangalha.

José disse que não conseguiu dormir por dois dias seguidos após o ocorrido. O assentamento, que reúne 280 famílias, se organizou em vigílias, com turnos das 19h à 0h e da 0h às 7h. “A gente fica assustado, com medo. Não sei o que pode me acontecer”, disse. Ele conta que mora apenas com a criança. “A mãe nos abandonou, se acontece comigo não sei o que seria do meu filho”, lamentou, aos prantos.

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O produtor disse que, depois de testemunhar os armamentos, o menino tem feito menção à cena. “Ele às vezes fica apontando, até fazendo pá-pá (som de tiro). Não é porque é meu filho, não, mas ele é muito esperto e entende o que acontece por volta”, acrescentou o pai.

Após a denúncia das ameaças, servidores do Ministério Público Federal (MPF), da Promotoria Pública de Formosa, da Procuradoria-Geral da República (PGR) e da Polícia Federal (PF) se reuniram para “assegurar que o Incra possa executar o trabalho com segurança de avaliação da situação das famílias acampadas”, completou o Incra em nota.

A promotora de Justiça Andrea Beatriz Rodrigues de Barcelos, da 6ª Promotoria de Justiça de Formosa, foi ao local com representantes dos outros órgãos. Segundo o Ministério Público de Goiás, outras violações aos direitos humanos foram denunciadas.

“Na oportunidade, ouvida a comunidade, foram relatadas diversas violações a direitos fundamentais das famílias acampadas, como a falta de acesso à água potável, restrições de locomoção, com fechamento de estradas, ameaças, presença de drones violando a privacidade das famílias etc.”, cita o documento.

Ameaça com laser

Uma das moradoras do assentamento, de 28 anos, disse que viveu noites de terror. “Todas as noites, parava um carro perto da casa, desciam os homens e faziam agitação na corrente como se quisessem abrir a porteira”, disse a ruralista, com medo de se identificar.

Chamados de “guardinhas” pelos assentados, os jagunços faziam as rondas em horários específicos. “Era por volta das 20h, das 3h e das 5h”, afirmou.

Por não serem regularizadas, as moradias são montadas com lonas e estacas. “Depois, eles passaram a iluminar com lanterna e farol as casas”, detalhou. A luz ressaltava os vultos no acampamento, permitindo visualizar o interior das barracas, segundo relatou a moradora.

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Ao Metrópoles ela disse que a situação foi assim por dias, até que uma noite saiu de casa para ver do que se tratava. “Quando eu vi, tinha em mim uma luzinha vermelha. Eu me tremi, mas perguntei ‘estão querendo alguma coisa?”, lembra. “Ninguém respondia, só aquela luz no meu peito, nem sei dizer por quanto tempo.”

Quando voltou para casa, ela disse que deitou no chão e passou o resto da noite no solo, com medo. No dia seguinte, pediu a companhia de outros assentados para que não ficasse sozinha.

“Nós somos camponeses, a gente trabalha na lavoura, fica cansado do dia inteiro. Eu só queria que tivesse paz.”

O assentamento é de nove hectares, dividido em três áreas, com as famílias. Após as constantes ameaças, ela saiu de casa, na área 1 do acampamento, e foi para a área 2. No local que ocupava, eram plantados milho, feijão, mandioca e pimenta.

“Você vai morrer”

Outra moradora, que também não quis se identificar, relatou que voltou para casa e viu escrito na poeira no vidro do carro uma ameaça com o nome dela, que será substituído para preservar a identidade. “Ana*, você vai morrer.” Nesse dia, ela entrou em contato com lideranças do MST e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) – entidade vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que acompanha famílias camponesas da Agricultura Familiar.

Com a mediação, ela conseguiu ser retirada do assentamento e ficou em um lugar reservado, para ser protegida, por uma espécie de programa de proteção do CPT. Apesar de ser orientada a ficar longe, naquele dia Ana tinha voltado à propriedade, para fazer o cadastro.

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“Hoje eu não tenho rumo, não consigo planejar minha vida”, lamentou. “É revoltante você saber que a pessoa que fez tudo não tem consequência. Imagina se fosse um sem-terra armado e ameaçando. Era preso na mesma hora. Já eles fazem o que querem”, bradou indignada.

O casal de idosos Sebastião das Neves, 70, e Nery dos Santos, 62, também relata que tem medo do que pode acontecer. Sebastião tem um filho de 34 anos, que tem deficiência auditiva. “Ele vê o carro dos ‘guardinhas’ e fica todo assustado, se esconde. Eu também me sinto intimidado”, desabafou.

Histórico de negociação

Relatório do Ministério de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, enviado ao Metrópoles pelo Incra, indica o histórico das negociações sobre o futuro das terras. Para pressionar por reforma agrária, 3 mil famílias de trabalhadores rurais do Movimento Sem Terra (MST) ocuparam, em 31 de agosto de 2014, o complexo de fazendas localizada entre os municípios de Corumbá de Goiás e Alexânia, denominado Fazenda Santa Mônica, de propriedade do então senador Eunício Oliveira.

No ano seguinte, houve decisão de reintegração de posse ao senador, com a promessa de que o Incra assentaria todas as famílias em locais a serem escolhidos pelo referido órgão. Em dezembro de 2015, cerca de 300 famílias, que seriam assentadas como implementação da primeira fase do “Plano Corumbá”, foram levadas pelo Incra para o imóvel denominado “Fazenda Crixás – Cangalha – Maltizaria – Laranjeiras e Porteirinha”, situada no município de Formosa, com área total de 10.983 hectares.

As fazendas pertenciam ao mesmo proprietário, e o contrato foi firmado em acordo com ele, para que o Incra assumisse as dívidas públicas. “O Incra seria o credor, e o fazendeiro escolheu o terreno”, destacou a superintendente do instituto no DF e Entorno, Cláudia Farinha.

De acordo com a superintendente, as dívidas do proprietário com a União somavam R$ 60 milhões, avaliada em 2018. O Incra estava disposto a pagar mais de R$ 86 milhões pelos 10 hectares em terra nua da fazenda.

A reportagem teve acesso ao Ofício nº 78, de 2020, da Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos (PFDC), do Ministério Público Federal. O documento destacou que já havia dois empenhos para os pagamentos, nos valores de R$ 12.798.606,07 e de R$ 74.171.298,56.

No documento direcionado ao presidente do Incra da época, o MPF solicitou que o instituto apresentasse em cinco dias as providências que seriam adotadas para assegurar que a aquisição dessa área se concretizasse, bem como a permanência das famílias mediante notificação extrajudicial.

O ofício foi assinado pela procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, e pelo procurador da República coordenador do Grupo de Trabalho da Reforma Agrária da PFDC.

Questionado sobre a tramitação do processo, o MPF destacou que o procedimento ao qual o ofício está relacionado foi juntado a outro procedimento reservado. “Não sendo possível apurar a tramitação atual”, informou em nota.

Espólio da família

No espólio da família, constam oito fazendas e herança avaliada em R$ 207 milhões. Nenhuma das propriedades tem a nomenclatura das terras negociadas com o Incra. O inventário também destaca que a família tem dívidas no valor de R$ 132 milhões. Os débitos são referentes a dívidas com bancos públicos, direitos trabalhistas e previdenciários, não pagos a funcionários.

Em um dos processos que tramitam no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), os familiares alegam a previsão do pagamento de 90% em títulos da dívida agrária.

O Incra informou que o cadastramento feito nesta semana faz parte do rito e que a superintendência do DF está em fase de elaboração de um diagnóstico das famílias acampadas no imóvel.

O instituto acrescentou, ainda, que os processos de incorporação de áreas para reforma agrária seguem o rito legal composto de etapas importantes. “Além disso, houve a paralisação de incorporação de novas áreas para fins de reforma agrária no último período.”

O órgão esclareceu que “não toma a terra do fazendeiro”. “Na desapropriação, a autarquia paga uma indenização ao proprietário em valores de mercado, aferidos pela vistoria de avaliação. A indenização pela terra nua é paga em Títulos da Dívida Agrária (TDA), títulos do Governo Federal emitidos pelo Tesouro Nacional.”  Já as benfeitorias, como edificações, cercas e pastos, são pagas em dinheiro. Os recursos para as indenizações vêm do orçamento do Incra.

O Metrópoles tentou contato com as advogados da família por telefone e e-mail, mas não teve resposta até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para possíveis manifestações.

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