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Esquecidos pelo poder público, moradores de rua se espalham pelo DF

Uma das causas, segundo especialista, é a ineficiência de políticas públicas. Governo criou apenas 100 vagas de acolhimento desde 2015

atualizado

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Igo Estrela/Metrópoles
morador de rua
1 de 1 morador de rua - Foto: Igo Estrela/Metrópoles

Entra governo, sai governo, e um dos principais problemas sociais do Distrito Federal se perpetua sem entrar no radar do poder público: pessoas em situação de rua. Segundo especialistas, a maior parte delas não está apta a votar e, entre outros motivos, essa peculiaridade ajuda a explicar o desprezo dos políticos pelos sem-teto. Em condição de vulnerabilidade, essas pessoas nem sequer compõem o principal censo demográfico do Brasil, estudo estatístico que mapeia a população em todo o território nacional.

Entretanto, aos olhos de quem trafega pelo Plano Piloto e pelas demais cidades do DF, eles não são invisíveis. Ocupam praças, estacionamentos, acomodam-se sob marquises ou em áreas verdes, descampadas ou não. Moradores e comerciantes afirmam que a população em situação de rua tem aumentado e deve passar por novo incremento, pois o número de desabrigados tende a crescer diante da proximidade das festas de fim de ano. Esse cenário torna mais frequentes outras feridas sociais, como a violência.

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Nesta 10ª reportagem da série DF na Real – na qual os candidatos ao Governo do Distrito Federal (GDF) comentam o que fariam (confira no fim do texto) –, o Metrópoles aborda um problema que parece não ter fim: a falta de políticas públicas para moradores de rua e o aumento de pessoas nessa situação no DF.

A Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (Sedestmidh) informa que há 3 mil delas. Porém, o número é maior, pois a pasta considera apenas o registro de atendimentos nas unidades do governo e nas entidades conveniadas que prestam assistência.

Desde 2015, houve crescimento insuficiente no número de vagas em instituições que abrigam os sem-teto: de 370 para 470. O total disponível só é suficiente para atender 15% da população de rua estimada pela Sedestmidh. As oportunidades de acolhimento em unidades assistenciais não são exclusivas para eles: também abrangem idosos e famílias com deficiência.

Nos últimos anos, alguns fatores contribuíram para o aumento da quantidade de moradores de rua instalados no Distrito Federal. Um deles foi o salto populacional no DF: de 11,4% entre 2012 e 2017, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Outro foi a alta do desemprego. Hoje, são 308 mil pessoas sem trabalho formal. Essas circunstâncias, de acordo com especialistas, contribuem para a falta de moradia.

Enquanto isso, moradores reclamam
O crescimento da população em situação de rua é perceptível em todas as regiões administrativas do DF. E as famílias que vivem em casas e apartamentos reclamam do aumento da insegurança.

“Muitos traficam e usam drogas. Já os vi fazendo sexo, fogueira e muita fumaça. Às vezes, brigam e se esfaqueiam, falam muitos palavrões e batem latas”, reclama a dona de casa Michelle da Cunha, 32 anos, moradora da 306 Norte desde 2013.

Michele lembra que, quando chegou à quadra, não havia tantos moradores de rua. Mas o número de sem-teto cresceu muito, diz, principalmente entre os blocos comerciais e residenciais. Ao mesmo tempo, aumentou a preocupação dela com os dois filhos, de 3 e 7 anos.

A situação chegou a ponto de se tornar insustentável. Tanto que, há dois anos, ela, o marido e as crianças se mudaram de prédio na quadra. Antes, a família vivia no primeiro andar do Bloco J. Hoje, mora no quarto pavimento do G, mais distante de onde os sem-teto se aglomeram.

Michelle lembra que, quando havia algazarra na rua, costumava subir o volume do aparelho de som e evitava que os filhos chegassem perto das janelas do apartamento. Também os proibia de brincar no térreo do edifício quando havia moradores de rua nos arredores.

“Meu filho mais velho não conseguia dormir por causa do barulho feito pelos moradores de rua. A professora dele me contou que isso atrapalhava o rendimento dele na escola, pois queria dormir durante a aula”, relembra.

O funcionário público Everton Garcia, 36 anos, é síndico do edifício de onde Michelle e a família se mudaram. Ele reforça o infortúnio vivido pela mulher e conta que, desde sua chegada ao bloco, há quase três anos, houve três trocas de inquilinos no apartamento do primeiro andar – o imóvel funcional pertence à União, mas é gerido pela administração central do Ministério da Defesa.

Nos fins de ano, há mais moradores de rua na quadra. O número aumenta também quando há ‘saidão’ da cadeia. Fazem algazarra de madrugada, extrapolam no barulho. Já encontramos fezes e facas espalhadas pelo gramado

Everton Garcia, morador da 306 Norte
Hugo Barreto/Metrópoles
Everton Garcia conta que dialoga com população de rua a fim de evitar conflitos com moradores dos prédios

 

Posto
A cena se repete a 2,7km dali, na 314 Norte. Moradores de rua se aglomeram atrás de um posto de combustíveis, próximo ao comércio. No local, montam barracas e empilham trapos, colchões velhos e baldes, entre outros utensílios.

Quando há denúncia, a Agência de Fiscalização do DF (Agefis) vai ao lugar e remove os objetos, como ocorreu na última quarta-feira (3/10), quando servidores do órgão retiraram três caminhões de pertences dos sem-teto. Porém, esses moradores retornam ao local nos dias seguintes às operações.

“Eles não mexem conosco, mas há o risco de acidente. Eles fazem fogueiras atrás do posto. Se uma fagulha voa e cai no lugar errado, pode causar um desastre. É um posto de combustível”, diz um funcionário do estabelecimento, que prefere não se identificar por medo de represálias.

A Agefis afirma, em nota, que monitora as áreas para que os moradores não retornem. “Infelizmente, com a proximidade das festas de fim do ano, esse tipo de invasão aumenta”, acrescenta.

A autarquia diz também que, em 2018, realizou 40 operações do tipo. “Os limites de competência da fiscalização da Agefis, nesse tipo de operação, é apenas para retirada de objetos afixados na área pública. Não é atribuído à agência poder para retirada compulsória das pessoas”, finaliza.

Hugo Barreto/Metrópoles
Agefis não pode retirar os moradores de rua dos locais públicos, apenas remover os pertences deles

 

A Polícia Militar do DF diz que pode retirar os moradores de rua quando há flagrante de crime, e pede ajuda à população para denunciar delitos, pelo número 190. A Polícia Civil, por sua vez, afirma que “atua de forma repressiva, principalmente combatendo o tráfico de drogas”.

A corporação diz também que identifica esses moradores quando são levados às delegacias e, se houver necessidade, os submete a procedimento criminal. “É importante que todas as ações ilícitas sejam imediatamente comunicadas à PCDF, inclusive, pela delegacia eletrônica, para que as políticas sociais e de segurança sejam tomadas com base nos dados coletados”, finaliza.

Desemprego
Por trás dos números oficiais e dos relatos de quem se incomoda com a situação, há histórias de vida tristes. Como a de Jacelane Pereira, 40 anos, que deixou Itumbiara (GO), onde nasceu, a 405km de Brasília, em busca do sonho de “conhecer a cidade”.

Em um ônibus, desembarcou em Brasília na última terça (2), sem documentos, como carteiras de identidade e de trabalho. Deixou para trás a vida na roça à procura de emprego no DF, onde não tem familiares ou amigos.

“Quero arrumar emprego. Posso fazer faxina, ser babá. Se tiver trabalho honesto, não vou morar na rua, usar álcool, crack e cigarro. Vou poder pagar aluguel, comprar fogão, geladeira”, diz uma das mais novas “moradoras” da Praça do Relógio, no centro de Taguatinga, onde é comum a presença de pessoas sem-teto. Ela diz que, nos próximos dias, pretende concentrar esforços para conseguir emprego.

Igo Estrela/Metrópoles
Jacelane desembarcou em Taguatinga nesta semana, sem emprego e moradia

 

Três principais fatores explicam o elevado número de pessoas em situação semelhante à de Jacelane. “O desemprego, a crise econômica e a falta de moradia”, explica a professora do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB) Maria Lúcia Lopes.

“Quando faltam vagas de trabalho formal, pessoas tendem a procurar o informal. Isso não basta para segurar a família. Eles, então, têm tensões em casa e tentam algo em outra cidade. Não conseguem e param nas ruas”, acrescenta. A pesquisadora, doutora em política social, afirma que a maior parte dos sem-teto do DF não morava aqui antes de fazer da rua seu abrigo.

Um deles é o amazonense Frank Santiago, 42, morador da Praça do Relógio há três décadas. Desde então, perambula pelos arredores em busca de “bicos” como borracheiro, mecânico e eletricista. Mas demonstra desestímulo para conseguir trabalho fixo devido às diversas portas que se fecharam para ele nesse período.

“Já trabalhei em uma ‘autoelétrica’. Mas faz muito tempo. Hoje, nem tenho vontade de trabalhar. Se me perguntar por que moro na rua, te digo: ‘Não sei’”, afirma.

Frank e Jacelane se encaixam no perfil da maior parte dos moradores de rua, segundo Maria Lúcia Lopes. “Estão em situação de pobreza extrema e não têm acesso a políticas sociais”, explica. Os desafios para esse grupo alcançar reviravolta tende a piorar, segundo a especialista.

Ela afirma que o problema dos sem-teto nos centros urbanos é tão antigo que tem se naturalizado. E mais: a sociedade, segundo a pesquisadora, acostumou-se a culpabilizar esse grupo por diversos problemas, como a violência e a sujeira nas ruas.

É fácil dizer que sempre existirão ricos e pobres, mas isso decorre da desigualdade e da má distribuição de renda. É fácil o governo e a sociedade entenderem como ‘algo natural’. Essa percepção desresponsabiliza o Estado, que faz de conta que não vê os moradores de rua, como se estivessem nessa situação por serem preguiçosos. Mas está muito difícil encontrar emprego

Maria Lúcia Lopes, professora do Departamento de Serviço Social da UnB
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Acolhimento
Os moradores de rua tendem a se concentrar no centro das metrópoles. Mas, no caso do DF, eles estão nas áreas periféricas. No Gama, perambulam em volta da rodoviária, do shopping e do hospital regional (HRG) da cidade. Para amenizar o problema social, a Casa Santo André recebe, há 13 anos, os sem-teto.

“Hoje, acolhemos homens de 18 a 59 anos, em maioria, e os ajudamos a obter documentos, fazer cursos de capacitação e ter acesso a serviços de saúde. Sempre em parceria e com apoio de voluntários”, conta a presidente da instituição, a advogada Fabiana Moraes, 40.

O abrigo é um dos dois conveniados com a Sedestmidh e tem cinco unidades (quatro em Sobradinho e uma no Riacho Fundo), que acolhem 220 pessoas. Apesar disso, o número é insuficiente, na avaliação de Fabiana. “Todo dia tem gente querendo ficar aqui. Mas temos um limite. Se tivéssemos mais cinco casas, ficariam lotadas”, afirma.

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Segundo a Sedestmidh, a pasta tem 30 equipes do serviço de abordagem social, que atende moradores de rua. A solicitação de acolhimento é feita pela central de vagas, onde se verifica na rede o local que pode receber as pessoas.

Um deles é a Unidade de Acolhimento para Adultos e Famílias (Unaf) Areal, que tem capacidade para atender até 150 pessoas. Além disso, há as unidades parceiras – Casa Santo André (220) e Instituto Inclusão (100).

A secretaria também disponibiliza dois Centros Pop (903 Sul e Taguatinga), para cadastro de quem está em situação de rua. Nesses locais, os acolhidos recebem alimentação, fazem cursos e podem lavar roupa e descansar, além de ter atendimentos social e psicológico.

Veja o que os candidato ao GDF têm a dizer sobre o tema:

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