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A solidão de Iberê Camargo e o mal-estar do Brasil

Exposição No Drama, montada no Espaço Marcantonio Villaça, retrata anos finais de produção do artista gaúcho

atualizado

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Bernardo Scartezini/Especial para o Metrópoles
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1 de 1 foto-de-abre6 - Foto: Bernardo Scartezini/Especial para o Metrópoles

Entra nos últimos dias, sem muito alarde, uma das exposições mais importantes a passar por Brasília nesta temporada. O Espaço Marcantonio Villaça, dentro do Tribunal de Contas da União, abriga até 1º de dezembro (sábado) a mostra No Drama, com obras de Iberê Camargo.

Não faz muito, no final de 2015, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) recebeu uma vertiginosa retrospectiva para marcar o centenário do pintor gaúcho. Mesmo ainda sob o impacto daquela experiência, um tanto exaustiva física e emocionalmente, esta mostra – bem mais modesta em tamanho e ambição – tem seu valor.

Daquela feita, boa parte da narrativa da mostra girava em torno dos carretéis de Iberê Camargo (1914-1994), peças que dominaram a mais larga parcela de sua produção, com carga dramática pessoal vinculada à infância e desdobrando-se, ao longo do tempo, como campo de batalha para a sua prática artística, no sentindo de lentamente abandonar a figuração em favor da abstração.

A atual mostra, No Drama, passa batida por carretéis porque os curadores Eduardo Haesbert e Gustavo Possamai têm outro ponto de partida e, por esse caminho, eles atingem os anos finais da produção de Iberê.

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O escopo, explica o texto da dupla de curadores, é apresentar o diálogo do pintor com as artes cênicas. Boa. Faz parte do engenho da Fundação Iberê Camargo, instituição familiar responsável por manter a memória do artista, inclusive fazendo circular seus trabalhos, criar diferentes abordagens a cada vez.

Então a se tomar a série Lendas do Sul (1962), desenhos que serviam de estudo para painéis e tapeçarias sobre a obra do folclorista gaúcho João Simões Lopes Neto (1865-1916). Iberê trabalhava a soldo do Sindicato de Corretores de Seguros e Capitalização do Estado da Guanabara. Mesmo por que morava no Rio de Janeiro já fazia bons anos, onde era professor da Escola Nacional de Belas Artes.

Praticamente da mesma época, os desenhos para estudos de cenário e figurinos do Balé Rudá (1959), de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), foram feitos a partir de um poema sinfônico que pretendia representar a criação dos povos das Américas. (Rudá, na mitologia marajoara, sendo o deus do amor.) A morte do maestro inviabilizou a produção. E jamais saberemos no que daria essa parceria.

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Essa sequência de estudos, Lenda do Sul e Balé Rudá, meio que formam a primeira parte da exposição, tanto cronológica quanto espacialmente, logo à entrada da Marcantônio Villaça. Na sequência, há um hiato de mais de duas décadas até um par de pinturas em óleo sobre tela que já trazem o gestual mais característico de Iberê Camargo. E trazem a figura humana.

O hiato de duas décadas, grosso modo, corresponde (anos 1960 e 1970) ao centro nervoso da obra de Iberê, quando os carretéis se tornaram a peça central de seu estudo – lentamente perdendo o traço de seus contornos e ganhando mais e mais manchas de tinta – até se tornarem volume – até se tornarem pura cor – naquela que talvez seja a mais pessoal e solitária jornada de um artista no século 20 da arte brasileira.

Quando reencontramos Iberê, após um salto no tempo, a figura humana parece ter surgido do fundo de seus quadros, brotado da própria paleta de cores. Já de volta a Porto Alegre, o artista trabalhava em seu ateliê no bairro Nonoai, no qual recebia amigos e aprendizes. Recebia, também, modelos para uma série de estudos de nu.

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Quando soube, em meados do ano de 1992, que estava com câncer, a resposta de Iberê Camargo foi imediata – e teve a forma da série Tudo Te É Falso e Inútil, cujo título faz uma referência à morte, emprestada dos versos de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, em Vem, noite antiquíssima e idêntica (1914).

Estava aberta a última fase de sua vida, de sua produção, em que se fôssemos traçar paralelos com outras artes, não seriam mais os contos gauchescos de Lopes Neto ou os brasilianismos de Villa-Lobos suas correspondências imediatas. Talvez a desolação de Samuel Beckett.

Alongando-se por esse momento, e articulando com as pinturas desta sala, os curadores repartiram por duas paredes uma série de desenhos realizados com modelo vivo no Nonoai. “O artista como um diretor de cena, que coordena os movimentos rápidos da modelo. Através de seu registro, deixa rastros espelhados e duplicados de figuras que parecem vagar no espaço.”

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Eduardo Haesbert e Gustavo Possamai consideram esses desenhos como preparativos para Solidão, a última pintura de Iberê Camargo. Segundo alguns pesquisadores, uma obra inacabada. No canto inferior direito, trêmula, a assinatura do autor e a data (94) talvez a contradizer tal entendimento.

As três figuras (duas modelos e um manequim?) são engolfadas por uma luz dourada, fria e chapada, sem sombras, que os curadores associam ao pôr do sol sobre o rio Guaíba. “Fantasmas em um mundo sem densidade, nem peso”, definiu a crítica Icleia Borsa Cattani, em seu ensaio Paisagens de Dentro: as Últimas Pinturas de Iberê Camargo (2005).

A lembrar aqui e agora aquilo que disse o pintor Paulo Pasta, num seminário de 2002, promovido pela Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre:

“Li, não lembro onde, uma passagem do crítico italiano G.C. Argan que dizia ser a pintura metafísica italiana o resultado de um país com presente miserável e passado grandioso. De certo modo esses assim chamados pintores metafísicos tornaram visível esse lugar de que fala Argan, quando desentranharam o seu sentido. Se estamos acostumados a entender então que o artista responde sempre de maneira apropriada à realidade em que está, esses últimos trabalhos de Iberê podem ajudar a desvendar mais deste país. Nossa história não é tão grandiosa. Isso fica para a glória sempre presente da natureza. Pintar aqui é um pouco sentir o mal-estar disso. Nenhum sentido forte veio nos revelar, a exemplo do movimento italiano. Não nos vemos direito ainda. Iberê, com essas últimas pinturas, fez um avanço enorme nessa direção. Recordo-me de pouca coisa da arte atual brasileira com tamanha carga de possibilidades para sustentar, através da sua liberdade e força moral, o embate expressivo de cada um. Nada com mais cara de um começo, de um novo começo, do que essas pinturas. De minha parte, sei que penso nelas todos os dias.”

(trecho tirado do livro Diálogos com Iberê Camargo, 2003)

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