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#euavisei e outras hashtags que, em vez de atrair, afastam

Tripudiar com o eleitor só aumenta o fosso entre os brasileiros e torna mais difícil qualquer movimento para salvar o país das trevas

atualizado

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Kacio Pacheco/Metrópoles
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1 de 1 unnamed-file1 - Foto: Kacio Pacheco/Metrópoles

No CEP onde moro, cidade-satélite de Brasília, desde um ano antes das eleições já se fazia campanha para o presidente eleito (cujo nome tenho muita dificuldade em falar e escrever). Na minha rua de 12 casas, suspeito que apenas dois vizinhos estudantes universitários não votaram naquele que derrotou Haddad. Estou cercada de adversários políticos por todos os lados, tanto na minha quebrada quanto no Plano Piloto. Eu e 30% dos eleitores brasilienses, cujo candidato fracassou nas urnas.

Eu não avisei e nem se quisesse teria condições de fazê-lo. Seria uma conversa de uma cobra com um porco-espinho, um dos dois fatalmente morreria. Sigo em silêncio.

Diante das graves e intolerantes circunstâncias, o silêncio e a alegria têm efeito senão revolucionário, porque a rigor não mudam nada abruptamente, mas pelo menos não pioram as coisas e podem desarmar os corações.

Depois desse nariz de cera, como se dizia nos tempos antigos do jornalismo, vamos ao que interessa nesta crônica domingueira: a hashtag #euavisei, que saltita nas redes sociais desde que o novo governo iniciou a nova era das trevas.

#euavisei é um modo de tripudiar com o eleitor daquele que ocupa o Palácio do Planalto. Ao se acreditar que nem todo brasileiro que votou naquele cujo nome não escrevo não é fascista nem mesmo protofascista, é apenas um ingênuo, um cidadão que acreditou nas fake news, um conservador ou mesmo um direitista liberal, ou um antipetista ferrenho, ao se acreditar nessa possibilidade, e acredito nela, o #euavisei impede qualquer troca de impressões, qualquer mudança de lugar. Paralisa e desqualifica aquele que, sem saber direito o que estava fazendo, votou no capitão.

Toda criança, ou quase toda, ouviu a mãe dizer #eubemqueavisei depois de escorregar no sabão, queimar os dedos com fósforo, tomar chuva e piorar da gripe. É quando a criança passa a acreditar que a mãe tem algum poder sobrenatural, capaz de antever o futuro. Na verdade, a mãe apenas viveu um pouco mais que o filho. O #eubemqueavisei impede a criança de aprender com os dedos queimados e a garganta inflamada.

#euavisei tripudia sobre o eleitor que talvez esteja começando a acreditar que errou de candidato. (Pesquisas recentes têm mostrado queda rápida na confiança de quem elegeu o Dezessete).

#euavisei irrita, fecha portas, impede o pensamento.

#euavisei traz embutido um “eu sou inteligente e você é burro”, incapacita, constrange.

Do mesmo modo, se vangloriar, chamar de FDP os 57 milhões de eleitores do vencedor, escarnecer dos envergonhados ex-batedores de panela, tudo isso só aumenta o fosso que divide e atordoa o Brasil. Não seremos somente nós, os supostamente lúcidos eleitores do Haddad, que vamos mudar “isso daí”, quando e se conseguirmos impedir que a barbárie destrua a civilização aqui no nosso quadrado tupiniquim.

O tempo que a gente perde se vangloriando – com hashtag ou com qualquer frase engraçadinha, irritadiça, inteligente – por não ser responsável pela desconstrução das políticas públicas, do embate político inteligente, do respeito que o Brasil conquistou lá fora, por tudo de terrível e trágico que nos tem petrificado, esse tempo que estamos perdendo podemos gastar tentando conversar ao pé do ouvido com quem dá pra conversar, mudando o tom da prosa, de igual pra igual, na manha, no afeto, com inteligência. Ou no silêncio. Na hora e no lugar certos, ele diz muito.

#euavisei não constrói nada. É uma hashtag narcisista. Só serve ao espelho.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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