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Indígenas assumem protagonismo na COP26 e irritam o governo

Povos indígenas mandaram para Glasgow sua maior delegação da história em conferências da ONU e atraem atenção do mundo para suas críticas

atualizado

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O discurso firme de uma jovem mulher indígena brasileira denunciando, em uma conferência internacional, o perigo que o aquecimento global representa ao modo de vida de seu povo está causando profundo desgosto ao governo brasileiro e a seus apoiadores. Desde que desceu do palco da COP26, em Glasgow, após dizer que os animais estão desaparecendo, os rios, morrendo, e seus parentes sendo vítimas de crescente violência, Txai Suruí, liderança de 24 anos do povo Paiter Suruí, de Rondônia, tornou-se alvo preferencial dos ataques, mas o protagonismo indígena como um todo na Conferência das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas causa preocupação às autoridades brasileiras, cujos discursos e promessas recebem menos atenção e confiança.

Com uma delegação de mais de 40 lideranças na Escócia, os indígenas brasileiros estão atraindo grande visibilidade na COP26. Seus rostos estão em outdoors nas ruas de Glasgow, jornalistas do mundo inteiro os buscam insistentemente para entrevistas e suas denúncias e propostas para proteger a natureza repercutem.

Personalidades como o ator e ativista Leonardo DiCaprio (imagem em destaque) e autoridades como John Kerry, o enviado especial dos Estados Unidos para a COP26, fazem questão de ouvir o que os representantes dos povos originários brasileiros têm a dizer e de posar para fotos com eles.

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O governo brasileiro responde a esse protagonismo indígena na COP26 com críticas e ataques. Txai Suruí afirma ter sido intimidada por um participante da comitiva brasileira após discursar, que disse a ela para deixar de “atacar o Brasil”, o que ela não fez (veja mais abaixo a íntegra da fala de Txai em Glasgow).

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) reclamou do discurso dela ao voltar ao Brasil depois de participar de um encontro do G20 na Itália, mas ter deixado de ir à COP26. “Estão reclamando que eu não fui para Glasgow. Levaram uma índia pra lá pra substituir o Raoni, né? Pra atacar o Brasil”, discursou ele a apoiadores na última quarta (3/11), citando outra liderança indígena que antagoniza com ele, o cacique Raoni Metuktire, da etnia Caiapó, que, aos 91 anos, não viajou para a Escócia.

Um dos maiores sites bolsonaristas também atacou Txai, comparando-a à ativista sueca Greta Thunberg e a chamando de “índia de Soros”, uma referência a um dos fantasmas que a extrema-direita mais teme, o investidor e filantropo húngaro-americano George Soros, um bilionário acusado por extremistas de financiar uma conspiração esquerdista mundial.

Como resultado, Txai passou a ser alvo de ataques racistas em suas redes sociais, o que não tem impedido que a ativista siga em Glasgow denunciando a violência sofrida pelos indígenas. Veja:

Promessas brasileiras vistas com desconfiança

A comitiva do governo brasileiro em Glasgow, liderada pelo ministro Joaquim Leite, do Meio Ambiente, mudou o tom belicoso que era adotado pelo ex-ministro Ricardo Salles e tenta se mostrar proativa. O Brasil fez promessas de reduzir pela metade até 2030 emissões de gases que causam o efeito estufa e aderiu a um acordo para conter o desmatamento. O problema é que a prática no país, que tem batido recordes de desmatamento e queimadas no governo Bolsonaro e desmontado o aparato de fiscalização, faz com que as promessas sejam vistas com desconfiança.

Dom Roque, presidente do Cimi
Dom Roque Pasloschi é arcebispo de Porto Velho (RO) e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

“Eu gostaria que o que está sendo prometido fosse verdade, mas a gramática do governo é uma coisa e a prática é outra. Não podemos tapar o sol com a peneira, pois sabemos o que significa o governo que está aí”, critica dom Roque Pasloschi, que é arcebispo de Porto Velho (RO) e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Em entrevista ao Metrópoles, o religioso e ativista ambiental acusou o Estado brasileiro de estar tornando cada vez mais difícil a vida dos povos indígenas. “As promessas na COP26 são vistosas, mas sabemos que vão continuar os desmandos, as invasões, o esbulho e, sobretudo, a perseguição às lideranças indígenas e aos ambientalistas. Nosso país é o que mais persegue e o que mais mata defensores do meio ambiente”, disse ele, em conversa por videoconferência na última semana.

Às vésperas do início da COP26, o Cimi divulgou relatório denunciando que as invasões de terras indígenas subiram 137% desde 2018 no Brasil e que em 2020, segundo ano do governo Bolsonaro, os casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” aumentaram em relação ao já alarmante número registrado em 2019: de 256 casos para 263.

Para dom Roque, os medos criados em relação ao risco que o governo Bolsonaro representaria para os povos indígenas não foram exagerados. “Esses temores estão mais do que se confirmando, tendo em vista os números apresentados no relatório de violência do Cimi e o negacionismo em relação às políticas indigenistas, que são políticas de Estado, não de governo”, avalia ele. “Não avançamos em nenhum processo de demarcação; está se negando os direitos constitucionais e as convenções que o Brasil assumiu com os organismos internacionais. Tudo isso demonstra a postura de um governo que decididamente não quer respeitar nem os direitos originários nem os direitos constitucionais dos primeiros habitantes desta Terra de Santa Cruz”, completa ele, que vê com otimismo, porém, a chance que as lideranças indígenas estão tendo para denunciar o que vêm sofrendo.

“Eles, os indígenas, que são sujeitos, são os protagonistas, são eles que precisam falar. E que bom que eles, incluindo a nossa representante aqui de Rondônia, a Txai Suruí, deram esse testemunho e apelaram ao mundo inteiro dizendo que não é pra 2030, não é pra 2050, é para agora, o grito é urgente. Foi bonito o testemunho dela, Txai Suruí sente na própria pele essa perseguição do governo. O Sínodo da Amazônia [realizado em 2019 e que preocupou bastante o governo] também caminhou nesse passo. O pedido feito pelo papa Francisco era para os povos originários e também aos povos  tradicionais se manifestarem por si mesmos. E eles estão sabendo aproveitar quando se abre espaço para relatar a realidade que eles estão vivendo sem nenhum enfeite, mas dura e crua como está sendo relatado lá na COP26″, conclui o religioso.

“Prêmio” Fóssil do Dia

Pelos ataques que Txai Suruí e outros indígenas brasileiros estão recebendo no contexto da COP26, um coletivo de entidades de ativismo ambiental no mundo inteiro concedeu ao Brasil, no último sábado (6/11), um troféu que funciona como uma crítica a países que atrapalham a construção de soluções para as mudanças climáticas, o Prêmio Fóssil do Dia. É a segunda vez seguida que o país é “agraciado” com o primeiro lugar nesse vergonhoso concurso. Em 2019, na COP25, em Madri, o então ministro Ricardo Salles também o ganhou graças ao terrível avanço das queimadas florestais no Brasil.

Enquanto isso…

Enquanto estão em Glasgow, as lideranças indígenas brasileiras recebem notícias mostrando que suas denúncias não são apenas retóricas. Quando a conferência já havia começado, no último dia 2, a Hutukara Associação Yanomami (HAY) apontou a morte de dois indígenas da comunidade isolada Moxihatëtëma durante conflito com garimpeiros na região do Alto Rio Apiaú, em Mucajaí, região sul de Roraima.

Semanas antes, em outubro, duas crianças yanomamis foram levadas pelo rio Parima, também em Roraima, perto de um garimpo ilegal dentro da terra indígena. Segundo os indígenas, as crianças de 5 e 8 anos foram sugadas por equipamentos usados nesse garimpo.

Leia a íntegra do discurso de Txai Suruí na abertura da COP26:

“Meu nome é Txai Suruí, eu tenho só 24, mas meu povo vive há pelo menos seis mil anos na floresta Amazônica. Meu pai, o grande cacique Almir Suruí me ensinou que devemos ouvir as estrelas, a Lua, o vento, os animais e as árvores.

Hoje o clima está esquentando, os animais estão desaparecendo, os rios estão morrendo, nossas plantações não florescem como antes. A Terra está falando. Ela nos diz que não temos mais tempo.

Uma companheira disse: vamos continuar pensando que com pomadas e analgésicos os golpes de hoje se resolvem, embora saibamos que amanhã a ferida será maior e mais profunda?

Precisamos tomar outro caminho com mudanças corajosas e globais. Não é 2030 ou 2050, é agora!

Enquanto vocês estão fechando os olhos para a realidade, o guardião da floresta Ari Uru-Eu-Wau-Wau, meu amigo de infância, foi assassinado por proteger a natureza.

Os povos indígenas estão na linha de frente da emergência climática, por isso devemos estar no centro das decisões que acontecem aqui. Nós temos ideias para adiar o fim do mundo.

Vamos frear as emissões de promessas mentirosas e irresponsáveis; vamos acabar com a poluição das palavras vazias, e vamos lutar por um futuro e um presente habitáveis.

É necessário sempre acreditar que o sonho é possível. Que a nossa utopia seja um futuro na Terra.”

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