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Ex-ministra francesa: Brasil tem lugar singular na luta contra racismo

Christiane Taubira, ex-ministra da Justiça da França e autora de lei que leva seu nome, fala sobre racismo no dia da Consciência Negra

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Astrid di Crollalanza/Divulgação
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1 de 1 Imagem colorida mostra Christiane Taubira é ex-ministra da Justiça da França e autora da Lei Taubira racismo - Metrópoles - Foto: Astrid di Crollalanza/Divulgação

Christiane Taubira, mesmo que não queira, já está no panteão dos grandes nomes da história, da luta pela liberdade, igualdade e fraternidade. Por muitas razões, mas uma só seria suficiente: com ela nasceu a lei que reconhece o tráfico e a escravidão como crimes contra a humanidade.

A Lei Taubira nasceu no Parlamento francês, mas foi reconhecida na União Europeia e na Organização das Nações Unidas. Portanto, Christiane, nascida na Guiana Francesa em 2 de fevereiro de 1952, tem currículo suficiente para falar sobre racismo e o Dia da Consciência Negra.

Mesmo que seja no Brasil. Em entrevista ao Metrópoles, a economista, socióloga, estrategista e diplomata, mostrou que sabe muito da realidade brasileira.

Luta contra o racismo

Aponta, por exemplo, que o Brasil é o país que melhor pode compreender que lutar contra o racismo é ser fiel à nossa Constituição em princípios básicos: a igualdade e a proibição da discriminação.

“E o racismo, que causa danos consideráveis, é o seu instrumento e a sua sequela em um mundo desigual. Portanto, precisamos desfazer e dissolver essa representação amplamente difundida e, às vezes, internalizada dos corpos negros como inferiores e potencialmente perigosos”, ensina.

Além da entrevista, os brasilienses poderão ouvir Taubira falar na quarta-feira (22/11), durante a Semana da Consciência Negra. Ela participará da mesa redonda Memória da Escravidão – Desafios Contemporâneos, organizado pela Embaixada da França, no Cine Brasília (106/7 Sul), às 20h, com entrada franca.

Na sua opinião, qual é hoje o principal desafio para a luta contra o racismo no mundo?
O mundo, tal como existe, é diverso. Como o imaginamos; díspar. Como é apresentado para nós; desigual. E brutal. Essa brutalidade recai quase sistematicamente sobre os corpos negros. São os que têm sua mobilidade mais prejudicada em um período de intensa circulação mundial; os mais maltratados em situações de emergência coletiva; os mais negligenciados no contexto da migração. Tudo isso contribui para remeter os corpos negros a uma espécie de destino manifesto de opressão.

Paralelamente, afrodescendentes no mundo todo cultivam um sentimento de nostalgia em relação a grandes figuras negras, e isso tem um efeito regenerador contra esse destino manifesto esmagador.

No entanto, esse efeito benéfico também os desarma: o refúgio no passado ou na grandeza não lhes fornece nenhuma arma para enfrentar o cotidiano ou lutar pela emancipação contra todas as formas de opressão. As raças foram inventadas na época das conquistas coloniais e de sua lógica mercantil para justificar a exploração, a espoliação e a dominação. Essa é sua única função.

E o racismo, que causa danos consideráveis, é o seu instrumento e a sua sequela em um mundo desigual. Portanto, precisamos desfazer e dissolver essa representação amplamente difundida e, às vezes, internalizada dos corpos negros como inferiores e potencialmente perigosos.

Isso deve ser feito com as armas contemporâneas da mobilização social e da ação política. Esta última deve estar à altura dos Estados e de suas políticas públicas; ela deve assumir uma dimensão transnacional. A ONU se contenta em medi-la. Sua ação se limita à elaboração de relatórios ou resoluções ineficazes. Nessa área, como em outras, falta-nos uma governança global.

A senhora acha que ter pessoas negras em cargos de decisão, como foi o seu caso, e como é atualmente o caso de vários ministros do governo Lula, ajuda a avançar na luta contra o racismo?
É extremamente importante para as gerações mais jovens que pessoas que se pareçam com elas ocupem altos cargos e exerçam responsabilidades significativas. Isso lhes mostra que o seu destino não se limita a trabalhos subalternos ou a uma cadeia de infortúnios.

Esses cargos de visibilidade exercem uma grande pressão sobre as pessoas envolvidas, pois lhes atribuem uma espécie de obrigação em termos de desempenho: espera-se que seja perfeito ou irrepreensível. O revés dessa visibilidade é que as expectativas são imensas e as decepções desproporcionais em caso de erro ou incompreensão.

Dito isso, essa política não é suficiente para combater o racismo. No meu caso, na França, minha posição política e minhas ações exacerbaram o preconceito racista. Os insultos e as ameaças eram numerosos, frequentes e violentos. Temos que nos manter firmes, por convicção, e para mostrar aos jovens, às mulheres que enfrentam o racismo e a injustiça, e a todos aqueles que internalizaram essa rejeição, que o derramamento de ódio não nos torna ilegítimos de forma alguma.

Entretanto, é fundamental que, nesses momentos, as autoridades públicas se manifestem de forma clara e contundente, lembrando-nos de nossos valores constitucionais e punindo severamente aqueles que os violam.

O que a Lei Taubira representa para a senhora?
Ela representa, antes de tudo, uma árdua luta política! Mas também foi uma provação pessoal. Porque não importa o quão forte sejamos, essa História continua sendo extremamente violenta e dolorosa.

Essa luta remonta há mais de 20 anos e, mesmo quando bem-intencionados, os políticos e a sociedade francesa consideravam, em sua grande maioria, que essa discussão pertencia ao passado e que não se deveria mais falar sobre isso, ou que essa História poderia, no máximo, ser tratada nas universidades, não no plano jurídico.

Foi preciso muita luta para demonstrar que essa questão se refere ao presente, através do racismo, que tem nela suas origens; ao plano jurídico, pois as instituições republicanas devem assumir publicamente a responsabilidade por essa História e suas consequências; à educação, pois se trata da História nacional, e não de um segmento relegado a uma parte da população.

Que “conselho” a senhora daria ao Brasil em termos de medidas de reparação diante das consequências da escravidão?
A lei Taubira reconhece que o tráfico de escravos e a escravidão constituem um crime contra a humanidade. Esse crime é, portanto, irreparável e imprescritível. Não há nenhuma contradição quanto a isso. Ninguém é capaz de reparar a violência, os maus-tratos, o despojamento cultural e simbólico, o desespero, a superexploração, a dor e o sofrimento causados pela venda separada de crianças e casais – a desumanização. As estradas dos escravos são pavimentadas com mortos sem sepultura.

O crime foi consumado. A única reparação possível foi feita pelas próprias pessoas escravizadas ao permanecerem humanas, ao inventarem formas originais de resistência, ao enriqueceram o patrimônio da humanidade com diferentes línguas, culturas e religiões sincréticas, como o Candomblé no Brasil, com narrativas que refletem seu relacionamento com a natureza e os mitos, como Iemanjá.

Entretanto, você tem razão, ainda há reparos urgentes e significativos a serem feitos. Eles dizem respeito às consequências das condições em que houve a saída da escravidão: os grandes latifúndios deixados aos senhores, as leis repressivas contra os ex-escravos; o acesso desigual ao conhecimento… E nesse caso também não é possível compensar as oportunidades perdidas pelas gerações anteriores.

Isso reforça a urgência da necessidade de reparar os efeitos atuais dessas injustiças. Esse processo não pode ser mecânico. Precisamos de medidas específicas em favor do acesso à educação, à capacitação, aos serviços públicos. Precisamos detectar e desfazer os mecanismos que reproduzem a exclusão.

As estradas dos escravos são pavimentadas com mortos sem sepultura.

Christiane Taubira, ex-ministra da Justiça da França

Na sua opinião, qual é a importância do Brasil na luta em favor das pessoas negras no mundo e na História?
O Brasil ocupa um lugar singular no mundo, sendo o país que, em uma área tão vasta, e com uma população tão grande, possui o maior número de afrodescendentes fora do continente africano. Quinze milhões não é pouco! Não é uma diáspora. É uma parte de si mesmo, consubstancial.

Durante um longo período, homens de poder puderam acreditar e fazer acreditar que o Brasil poderia ignorar, oprimir ou desprezar essa parte de si mesmo. Antes que o óbvio fosse constatado. Mas o óbvio é, na verdade, substância. Todas as culturas brasileiras trazem a marca dessa parte considerável da comunidade nacional, de sua identidade.

E o Brasil é provavelmente o país que melhor pode compreender que não se trata de agir “em favor das pessoas negras”, mas de dar corpo e ser fiel aos valores fundamentais da República Federativa do Brasil que estão previstos nos artigos 1° (cidadania, dignidade) e 5° (igualdade) de sua Constituição: a igualdade e a proibição da discriminação. E é por meio de políticas públicas que se corrige os efeitos e os mecanismos de discriminação que se estabeleceram de forma sistêmica.

Trata-se simplesmente de pararmos de distorcer a História. A nação brasileira foi constituída não por decreto, mas pelo entrelaçamento dessas trajetórias históricas marcadas pelas lutas dos povos indígenas e dos africanos deportados e escravizados; por sua solidariedade e pelos efeitos cumulativos de sua resistência, aos quais se somaram as lutas dos trabalhadores quando a economia industrial substituiu a economia agrícola nas cidades e adentrou as zonas rurais.

Se há sentido em considerar que uma nação possa ocupar um lugar singular no concerto do mundo, o Brasil poderia ser o paradigma. O Brasil tem, portanto, uma responsabilidade considerável e um papel decisivo no sentido de demonstrar que um país que constrói sua coesão com base na igualdade e na justiça, bem como no estabelecimento de instituições e serviços que respeitam o princípio de não discriminação, é um país que mobiliza toda a sua inteligência e energia e maximiza o seu potencial.

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