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Com pandemia e propaganda de “tratamento precoce”, automedicação cresce. Entenda

A automedicação é considerada prática de autocuidado, reconhecida pela OMS, mas deve ser feita de maneira consciente

atualizado

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Hugo Barreto/Metrópoles
remedio medicamento saude comprimido alopada
1 de 1 remedio medicamento saude comprimido alopada - Foto: Hugo Barreto/Metrópoles

Quem não tem uma “farmacinha” em casa ou na bolsa? A automedicação é algo cultural no Brasil, e na pandemia essa questão ficou ainda mais clara – afinal, um dos setores da economia que tem obtido bons resultados é o farmacêutico. Segundo levantamento do Instituto Febrafar de Pesquisa e Educação Corporativa, em parceria com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o segmento cresceu 16,2% no Brasil nos últimos 12 meses.

Yone de Almeida Nascimento, professora da disciplina de Farmacoterapia e Cuidado Farmacêutico no Centro Universitário Newton Paiva, afirma que a automedicação é considerada uma prática de autocuidado, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Além disso, a docente confirma que sintomas leves, como dor de cabeça ou cólica menstrual, podem ser tratados pelo paciente. “Por isso existem os Medicamentos Isentos de Prescrição (MIPs), recomendados pelas autoridades sanitárias para tratar os sintomas associados a condições de saúde autolimitadas, como os citados acima”, pontua.

Para Yone, essa alta na procura de medicamentos pode estar relacionada a “um medo muito grande de ir ao hospital em meio à pandemia e também baseado em uma esperança por meio de tratamentos precoces”.

A professora, contudo, alerta: “Quando fazemos o uso de um medicamento por conta própria, ele tem seus riscos. Por exemplo: usar uma analgésico com frequência e ele acabar mascarando algo mais grave. É por isso que existe aquele alerta ‘se persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado’. Outro ponto é o medicamento agravar uma doença que você já tem. Ou também pode anular ou intensificar o efeito de um remédio que porventura você use em conjunto”.

Mais uma vida

Dafni Pollyana, de 31 anos, viu a vida do seu pai, José Paulo Santos, de 59, ir embora como a de muitos brasileiros em meio a esta pandemia. Motivado por uma falsa ideia de um medicamento “milagroso”, o patriarca fez o uso da hidroxocloroquina e da ivermectina.

De acordo com a filha, “como a esposa dele tem lúpus e já tomava hidroxocloroquina e ivermectina, ele passou a tomar também os comprimidos dela”. Dafni acredita que a atitude do pai foi motivada também pela propagação desenfreada e recomendação “errada” dos fármacos nesta pandemia, inclusive por parte do presidente da República, Jair Bolsonaro.

Enquanto fora de casa os medicamentos alegadamente direcionados a um “tratamento precoce” da Covid-19 – algo repudiado pela maior parte dos estudos científicos revisados por pares até agora – eram propagados de boca em boca, do lado de dentro, a família dizia que não concordava, mas mesmo assim José Paulo queria tomá-los. Em um mês, tudo aconteceu: “Então ele pegou o vírus, ficou alguns dias ruim, passou uma semana em casa e piorou bastante”.

A família diz ainda que José Paulo estava em um sítio em Minas Gerais e precisou voltar a Brasília. “Quando ele chegou aqui já estava bem ruim, quase não conseguiu sair do carro. Levamos meu pai ao hospital, ele estava com uma saturação muito baixa e foi internado. Ficou dois dias bem grave e aí depois teve de ser intubado”, conta Dafni.

A filha ainda conta que fez de tudo para conseguir uma UTI, enquanto nem a hidroxocloroquina nem a ivermectina pareciam capazes de ajudar José Paulo. Infelizmente, o homem não resistiu.

Em março, um painel de especialistas internacionais do Grupo de Desenvolvimento de Diretrizes da OMS (GDG) publicou uma diretriz na qual pedia fortemente que a hidroxicloroquina não seja usada como tratamento preventivo da Covid-19. A recomendação é baseada em seis estudos clínicos com evidências de alto nível. Juntos, eles somaram mais de 6 mil participantes e confirmaram que o medicamento não é eficiente na prevenção contra a doença.

Faltaram caixas nos estoques

Jessica Aguiar, farmacêutica há 3 anos e atuante em drogaria, conta que, desde que a pandemia começou, a questão da automedicação explodiu. “O meu trabalho é promover o uso racional de medicamentos, realizando o devido acompanhamento ao tratamento, estando atenta até as interações medicamentosas, mas a automedicação vem sendo muito utilizada nesse contexto de pandemia, o que gera implicações sérias. Muitos pacientes tomam medicamentos sem a indicação correta de um médico ou a orientação do farmacêutico”, alerta.

A farmacêutica ainda pontua: “Recentemente, vivenciamos uma situação preocupante de automedicação, em relação ao uso de medicamentos que supostamente podiam tratar ou prevenir a Covid-19, como a ivermectina e a cloroquina. Tivemos um significativo aumento do uso destes medicamentos mediante difusão na mídia”.

O Conselho Federal de Farmácia (CFF) divulgou um estudo realizado no início de maio de 2021 no qual aponta que, durante o período pandêmico, pessoas da classe A e B passaram a se automedicar com mais frequência.

O vermífugo ivermectina, por exemplo, vendeu 857% a mais, enquanto a venda do antimalárico hidroxicloroquina aumentou 126%, ambos no período entre abril de 2020 e março deste ano.

“Muitos pacientes estavam tomando esses medicamentos sem orientação ou indicação médica, o que ocasionou a restrição da venda para apenas com receita. As vendas foram tantas que faltaram caixas nos estoques das drogarias”, conta Jessica.

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