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Vibrando com o gol de mão (por Sérgio Vaz)

Meio país comemora em êxtase a cassação de Dallagnol. A lei? Ora, a lei

atualizado

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Hugo Barreto/Metrópoles
Deltan Dallagnol (3)
1 de 1 Deltan Dallagnol (3) - Foto: Hugo Barreto/Metrópoles

Não vai bem um país em que se raciocina com o fígado.

Não funciona bem um tribunal superior que se baseia numa premonição de um ministro sobre o que poderia acontecer no futuro para tomar por unanimidade a decisão de cassar o voto de 344 917 eleitores.

Há muitas acusações contra Deltan Dallagnol. Há gravações que o comprometem. E não há nenhuma dúvida: ele não é uma pessoa simpática. Eu, pessoalmente, tive engulhos ao ver na TV as imagens de Dallagnol protestando contra sua cassação tendo junto dele, como papagaio de pirata, um dos filhos de Jair Bolsonaro – e muito provavelmente milhões de brasileiros sentiram o mesmo que eu.

Mas não se pode cassar um deputado porque ele é antipático – ou porque, quando era procurador, usou meios ilícitos para lutar pela condenação de Luiz Inácio Lula da Silva.

A Lei da Ficha Limpa diz que ficam inelegíveis por oito anos integrantes do Ministério Público (MP) que pedirem exoneração ou aposentadoria voluntária enquanto submetidos a Processo Administrativo Disciplinar (PAD). E o fato é que Dallagnol não era alvo de nenhum PAD no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) quando pediu desligamento.

Simples assim. É mais fácil que somar 1 mais 1. Não precisa desenhar.

O voto pela condenação do relator, Benedito Gonçalves, que seria seguido por unanimidade pelos seis outros ministros do TSE, se baseou na suposição de ele viria a ser alvo de um PAD com base em um dos vários procedimentos preliminares apresentados no CNMP.

Não existia PAD, mas, ah, viria a existir. Com certeza!

E então, como Dallagnol viria a ser alvo de um PAD no futuro, e viria a ser condenado no futuro, então tá: fica inelegível desde já. Está feita a justiça.

A lei que diz que ficam inelegíveis por oito anos integrantes do Ministério Público (MP) que pedirem exoneração ou aposentadoria voluntária enquanto submetidos a Processo Administrativo Disciplinar… A lei? Ora, a lei…

Como disse José Nêumanne Pinto: “Premonição de Gonçalves convenceu 7 ministros do TSE a cassarem em 1 minuto a vontade livre e soberana de 345 mil cidadãos paranaenses”.

Como disse Merval Pereira: “Continuamos a fase mediúnica da Justiça brasileira, quando se arquiva um processo porque ele certamente prescreverá no seu decorrer e se condena alguém pelo que poderia fazer caso acontecesse isso ou aquilo. (…) O relator do caso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Benedito Gonçalves, usou uma interpretação premonitória para cassar a candidatura de Dallagnol.”

Como disse o jornal O Globo em editorial: “Juristas argumentam que não cabe à Justiça Eleitoral arbitrar se, no momento do desligamento, sindicâncias ou reclamações administrativas em fase inicial pareciam caminhar para um PAD. Para esse grupo, a inelegibilidade, medida extrema numa democracia, deve acontecer apenas a partir de uma exoneração com um PAD em andamento. É, literalmente, o que diz a lei.”

A lei? Ora, a lei…

Dá grande tristeza ver como a polarização mexe com tudo em volta de nós. Tira a capacidade de usar a razão, nos torna escravos das emoções, nos faz reagir como se o Brasil fosse um gigantesco Coliseu romano. Quase meio Brasil gira o polegar para baixo pedindo a morte dos gladiadores com que não simpatiza, enquanto o quase meio Brasil do outro lado exige a extinção de seus oponentes.

Em dois dos grupos de WhatsApp de que participo, um da família, outro de amigos jornalistas que trabalharam no velho e bom Jornal da Tarde, muitas pessoas queridas – a rigor, a imensa maioria – comemoraram a cassação de Dallagnol como se o Brasil tivesse vencido a Copa do Mundo.

Que tristeza, meu Deus.

Não se trata, de forma alguma, de defender Dallagnol, defender o que ele fez como procurador, suas posições políticas. De forma alguma. Como disse O Estado de S. Paulo em editorial: “Em alguns casos, os abusos de operadores da Lava Jato restaram demonstrados de jure (vide as anulações de processos julgados por Sérgio Moro por suspeição de motivação política). E, de facto, a politização da operação foi ampla e notória. Tanto Dallagnol quanto Moro (e até a esposa deste) a usaram como trunfo para alavancar suas candidaturas. A operação cujo objetivo era apurar desvios de recursos públicos para fins particulares tornou-se ela mesma instrumento para promover ambições particulares: as carreiras políticas de servidores e seus parentes.”

Mas a questão é que, como diz o mesmo editorial, “a Lei é incontroversa: ex-magistrados ou procuradores podem se candidatar a menos que tenham sido demitidos em decorrência de processo administrativo ou judicial, ou se exonerado na pendência de processos administrativos disciplinares (PADs). No caso do ex-procurador não havia nem uma coisa nem outra”.

Um país que parece um imenso Coliseu romano. Um Maracanã continental em que as pessoas não se incomodam nem um pouco se o gol que deu vitória a seu time foi de mão – ao contrário, comemoram com ainda maior prazer.

Que tristeza.

 

Sérgio Vaz é jornalista (ex-Estadão, estado.com.br, Agência Estado, revistas Marie Claire e Afinal, Jornal da Tarde). Edita os sites + de 50 Anos de Filmes e + de 50 Anos de Textos.

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