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Larguei mão de cantar aquela canção (por Ana Paula Barreto)

Chico se “desapegou” de uma de suas músicas mais emblemáticas e “senhora” de um tempo passado: Com açúcar, com afeto

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chico buarque, cantor e compositor carioca
1 de 1 chico buarque, cantor e compositor carioca - Foto: reprodução/internet

E foi com afeto que Chico Buarque disse: “essa canção que fiz, não quero mais na minha playlist”. A frase não é dele certamente, mas de fato imagino que foi pensando assim que Chico se “desapegou” de uma de suas músicas mais emblemáticas e “senhora” de um tempo passado: Com açúcar, com afeto. Creio ser preciso mais que desprendimento, amadurecimento, crescimento pessoal, para se “livrar” de algo que nos invade a alma e nos faz escrever sobre. Com açúcar se faz música, mas com afeto se faz gestos! Chico fez um gesto.

Para aquelas e aqueles que não leram, pois afinal “a dor da gente não sai no jornal” (como também cantou Chico), o compositor decidiu tirar do seu repertório a canção Com açúcar, com afeto por entender que: “naquela época não passava na cabeça da gente que isso era uma opressão”. O que Chico, assim como outros artistas recentemente o fizeram, foi mostrar com um gesto ou dar o chamado “exemplo”, de que algumas obras podem ensejar o consentimento à opressão, o preconceito ou a falta de empatia.

Com açúcar, com afeto era canção que meu pai tocava em seu violão, era repertório certo e cantado naquele momento em que eu e meus irmãos tínhamos um pouco da sua atenção, enquanto minha mãe preparava o almoço. Vejam só vocês, temos fitas cassetes gravadas (posso ter que fazer uma citação explicativa ao final desse texto sobre o que é uma fita cassete para aqueles que nasceram depois da década de 90) em que ao fundo, no chamado background, conseguíamos ouvir o fechar e bater de portas com minha mãe pedindo para a cantoria cessar pois a comida “estava na mesa”. Se nestes dias era somente com afeto que minha mãe fazia tarefas domésticas e tinha a “obrigação” de nos dar o que comer eu não sei, mas posso lhes garantir que haviam pitadas de raiva e gotas de exaustão física e mental, isto tão somente por ser mãe, “esposa”, mulher. Também posso lhes garantir, de forma jocosa e com propriedade absoluta, que Chico foi e é para minha mãe e para muitas mulheres e homens, um crush irremediavelmente inesquecível.

Chico em seus versos cantava: “quando a noite enfim lhe cansa, você vem feito criança pra chorar o meu perdão, e ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratado, como vou me aborrecer? Logo vou esquentar seu prato, dou um beijo em seu retrato e abro os meus braços pra você”. Ele falava de um tempo em que a mulher ficava a esperar passivamente seu parceiro se divertir enquanto ela comandava sozinha tarefas domésticas, cuidava sozinha dos filhos, e ainda esperava com gratidão ele “voltar pra casa”. Este “tempo”, ainda tão presente, pode invadir o nosso futuro com tudo o que temos presenciado no Brasil, mas também em várias nações pelo mundo, onde repetidamente se tem negado os avanços civilizatórios históricos tão caros para mulheres, para a população negra e LGBTQIA+, para os povos indígenas e outras “minorias” implacavelmente oprimidas pela força majoritariamente de homens.

Para todas, todos e todes que acreditam que o revisionismo de obras passadas pode ser um caminho perigoso de censura, é importante dizer que se esse “revisionar” for feito pelo próprio autor, é justo que seja acolhido. Assim foi feito por Chico, assim foi feito pelos Stones com a canção Brown Sugar (como bem me lembrou meu amigo Beto, também um homem afetuoso e “revisor” de suas ideias) e assim está sendo feito por aqueles e aquelas que acreditam contribuir para que voltemos a caminhar em direção ao avanço, ao avanço pessoal e intransferível, ao avanço como forma de libertação do atraso, ao avanço coletivo e portanto, inegociável!

Talvez não seja necessário deixar de ler e nem retirar das prateleiras da história, livros, filmes, canções, obras diversas que trazem explicitamente ou nas entrelinhas machismo, racismo, misoginia, homofobia, mas é importante e fundamental que façamos a reflexão em torno daquele tempo, daquela época, daquele contexto histórico e como ele se reflete nos dias atuais. É urgente que possamos debater e entender por qual motivo é necessário que “cambiemos” de opinião, que mudemos nossa linguagem, que nos reinventemos como seres de fato humanos.

Não deve haver espaço para a censura? Sim, por certo que não! Mas há de haver espaço para a auto análise, o auto perdão, e para a desconstrução de uma linguagem que fere e machuca o outro. Ainda estamos a discutir e a colocar embaixo do nosso “guarda chuva da leniência” a liberdade de expressão como absoluta. A liberdade de expressão deve ser somente absoluta quando ela tem responsabilidade para com o sofrimento alheio, a liberdade de expressão não pode ser usada como absoluta quando ela está a abarcar expressões ofensivas proferidas, na sua maioria, por homens com poder que se escondem atrás do que chamam de “imunidade parlamentar”.

E é por isso, que quero terminar este texto, dizendo a você meu caro amigo Chico, da extrema importância do seu gesto. Pois, Meu Caro Amigo, é com afeto que lhe lembro que a coisa aqui não está preta, na verdade nunca esteve, até porque você sabe que se estivesse preta, ela estaria linda. A coisa aqui está séria, está doída, está latente. A coisa aqui, neste nosso Brasil e mundo afora, está esperançando por gestos como o seu. Sendo assim: obrigada por tanto!

 

*Ana Paula Barreto é jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pós-graduada em Comunicação Legislativa pela Universidade do Legislativo Brasileiro (Unilegis). Ex-assessora de comunicação do Senado Federal e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ex-chefe de comunicação da Secretaria das Relações Institucionais da Presidência da República.

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