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Brasil, onde tudo melhora e ninguém parece feliz (Por Juan Arias)

Hoje um presidente não pode orgulhar-se de não ter celular, nem  a- acreditar que as redes sociais podem atrair os mais pobres

atualizado

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Hugo Barreto/Metrópoles
Lula anuncia programa Acredita
1 de 1 Lula anuncia programa Acredita - Foto: Hugo Barreto/Metrópoles

O Brasil, gigante da América do Sul, vive um estranho paradoxo: desde que Lula chegou ao poder, todos os índices melhoraram, do econômico até o reconhecimento do peso do país no exterior. No entanto, todos parecem insatisfeitos ou desconfortáveis: ricos e pobres, trabalhadores e intelectuais, direita e esquerda. E Lula perde popularidade.

Há quem diga ironicamente que o país precisaria passar por um período de psicanálise para compreender o paradoxo que o angustia. E o primeiro que estranha, sem ocultar, é o próprio Lula, que chegou pela terceira vez ao poder, e esta com a árdua missão de libertar o país do peso de uma extrema-direita bolsonarista que o estava enterrando até levá-lo para um novo golpe de Estado.

O governo é inundado de razões que poderiam explicar essa agitação social quando deveria estar a celebrar uma espécie de ressurreição nacional. E Lula é o primeiro, e com razão, a se sentir desconcertado. Ele não entende que, apesar de desta vez ter criado um governo de centro-esquerda e ter se acertado no Congresso até com partidos de Bolsonaro para a aprovação de alguns de seus projetos, ele está de mãos atadas e em conflito com duas categorias que no passado foram seu campo de glória: a classe trabalhadora e a chegada à universidade do grande mundo dos pobres com a criação de bolsas de estudo.

Quanto aos professores das universidades federais que estiveram nos governos de esquerda anteriores, Lula, incrédulo, encontra hoje manchetes em jornais nacionais como: A greve dos professores já atinge 38 universidades. Todo mundo pede aumento salarial. O descontentamento geral está a alastrar-se, o que continua a preocupar o governo.

E não há menos descontentamento na classe do trabalho manual, a das fábricas, onde Lula cresceu ainda jovem e se tornou líder indiscutível dos movimentos sindicais que acabaram sendo uma categoria privilegiada. Hoje, o mítico sindicalista sem instrução que criou talvez o maior movimento sindical do mundo ocidental, parece desorientado quando percebe que aqueles milhões de trabalhadores que depositaram todas as suas esperanças nele já não parecem apoiar as suas antigas estratégias.

O último exemplo foi o 1º de maio passado, data mítica em que a esquerda, em bloco, reunia todos os anos em torno de Lula uma gigantesca manifestação de trabalhadores. Este ano, o primeiro surpreendido com a baixa participação dos trabalhadores em São Paulo foi Lula, que atribuiu isso ao fato de o evento “ter sido mal organizado”.

A extrema direita aproveitou-se imediatamente do fato de Bolsonaro, apesar de estar fora do jogo político e proibido de participar de eleições por oito anos, ter acabado de reunir uma multidão inesperada em São Paulo. As redes sociais de Bolsonaro foram atrivadas para anunciar que “um boneco de Bolsonaro leva mais gente às ruas do que Lula”.

Levará mais tempo para compreender esta antinomia do Brasil que, por um lado, melhora em todos os índices de desenvolvimento e prestígio internacional, e permanece preso no descontentamento e no desânimo que vai das fábricas às universidades. No momento, as primeiras explicações oferecidas por analistas políticos e os gurus da psicologia social dizem que a esquerda tradicional, que fundamentalmente apoia Lula no seu terceiro mandato, ainda não assimilou as novas tecnologias que estão revolucionando o mundo do trabalho.

Se ontem ter contrato permanente numa fábrica, com todos os direitos sociais e sindicais, era um privilégio, hoje isso está a mudar. Hoje, os jovens do trabalho manual e os próprios intelectuais nas universidades procuram outros caminhos. Estão menos interessados em empregos permanentes que consideram um espartilho, e procuram formas mais flexíveis, mais alinhadas com as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias. Eles não querem mais ser empregados, embora privilegiados, mas sim protagonistas do seu próprio trabalho.

Um dos exemplos mais marcantes que surpreendem Lula neste campo de trabalho é que as novas categorias de empregos, dos milhões de trabalhadores de entregas ao domicílio, resistem a entrar nos caminhos das antigas empresas sindicalizadas. Querem novos tipos de organização, novos métodos de segurança social, numa palavra: preferem ser livres embora inseguros e sentem-se donos de novos tipos de organização do trabalho.

Não é fácil para Lula, líder indiscutível das grandes greves metalúrgicas do passado, compreender esta mudança copernicana que atravessa o mundo do trabalho na era das novas tecnologias. Para Lula, a quem nunca faltou sentido político e triunfou nos dois governos anteriores, alguém terá que lhe explicar que o mundo mudou em pouco tempo, que o Brasil está ligado, para o bem e para o mal, ao mundo da novas tecnologias, e que isto, seguramente, não tem caminho de volta.

Hoje um presidente não pode orgulhar-se de não ter celular e ter que usar o da mulher, nem continuar a acreditar que as redes podem continuar a atrair, como no passado, para as suas inflamadas manifestações, os mais pobres ou os operários. Tudo isto ignora o facto de que neste mundo digital, por vezes uma simples ironia, seja ela inteligente ou grosseira, como a ideia de que um boneco de Bolsonaro leva mais gente às ruas do que o mítico ex-líder sindical, poder ser triste e até embaraçosa.

Em tempos de inteligência artificial intrigante, o perigo de ficar preso aos velhos clichês políticos e sociais, que outrora foram uma vitória para a classe trabalhadora, é real e provavelmente imparável. O que  resta ao Brasil e àqueles que não desistem de querer entender que o mundo está em trabalho de parto, ainda sem conseguir digerir que o ontem já se foi, é apostar sem medo na novidade. Não esqueçamos que, graças a estes novos horizontes que começam a ser vislumbrados, os jovens desiludidos pelos velhos políticos poderão produzir novas colheitas de esperança.

(Transcrito do El País)

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