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Símbolo da revitalização, complexo com 210 famílias fica sitiado pela Cracolândia

Moradores do Complexo Mauá foram atraídos por perspectiva de revitalização do centro, mas acabaram ao lado do fluxo da Cracolândia em SP

atualizado

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William Cardoso/Metrópoles
Imagem mostra pessoas fardadas em meio à rua - Metrópoles
1 de 1 Imagem mostra pessoas fardadas em meio à rua - Metrópoles - Foto: William Cardoso/Metrópoles

São Paulo — Os 210 apartamentos do Complexo Mauá foram entregues em 2021 como um dos símbolos do processo de revitalização do centro de São Paulo. Por sorteio e uma série de benefícios no financiamento, foram atraídas pessoas que trabalhavam na região, mas que moravam em bairros afastados. Agora, elas vivem o pesadelo de serem vizinhas do fluxo da Cracolândia, que se instalou na Rua dos Protestantes, logo atrás.

Construídas entre as estações da Luz e Júlio Prestes, em área degradada por décadas, as duas torres do complexo ficaram prontas com a participação da Prefeitura e do governo estadual, por meio também de uma parceria público-privada (PPP), além do financiamento da Caixa Econômica Federal.

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“Posso ser assaltado, posso levar uma facada, como aconteceu com um vizinho do nosso prédio. É uma pressão psicológica muito grande. A gente não dorme direito, parece que a gente está à míngua do poder público”, afirma o técnico de enfermagem Francisco, de 26 anos. “A vontade que dá é de abandonar o apartamento e deixar tudo para trás”, diz.

Antes de se mudar para o Complexo Mauá, Francisco vivia no Jardim Eliza Maria, na zona norte, distante da região central. “É periferia, mas muito mais tranquilo. Tenho a impressão de que estou vivendo agora no inferno. Se inferno existe, está aqui ao lado do meu apartamento”, afirma.

O técnico de enfermagem vive com a mãe e dois irmãos adolescentes no 14º e último andar de um dos prédios, mas mesmo assim é afetado pelo barulho da multidão de usuários de crack. O pior de tudo, diz, é a insegurança. “Saio todos os dias com celular no sapato. Foi a forma que encontrei. Dentro da estação, eu tiro”, diz. Ele conta ter visto seis assaltos desde que se mudou, fora os inúmeros relatos que escuta. “Mesmo morando em frente à GCM, aconteceu tudo isso.”

Enganados

“No dia 16, minha filha foi ameaçada com uma faca e roubada na porta do prédio. Estamos desesperados”, afirma a também técnica em enfermagem Luzia (nome fictício), 34 anos, que vivia no Parque Savoy, na zona leste, antes de se mudar para o condomínio com o marido e os dois filhos.

O crime ocorrido nesta semana foi a gota d’água para que a família deixasse temporariamente o condomínio no centro e voltasse à zona leste, para a casa da mãe de Luzia. “A gente vive em pânico”, diz.

A família da técnica de enfermagem se sente abandonada pelo poder público, depois de ter sido atraída pelos benefícios e promessas de renovação do centro. “Meu sentimento é de ter sido enganada. Jogaram a gente lá e não estão dando suporte nenhum. Não sei o que estão esperando, se é para morrer mais alguém”, afirma.

Comerciante e morador

O Complexo Mauá não é composto apenas por apartamentos. O condomínio conta também com 22 salas comerciais, mas apenas seis estão ocupadas atualmente. A maior parte segue fechada por tapumes e concertina (cerca de arame farpado enrolado), na tentativa de evitar invasões.

Há pessoas que são prejudicadas duas vezes, tanto como moradoras do prédio quanto como comerciante de uma das 22 lojas. É o caso de Vinícius, de 26 anos, que perdeu de 15% a 20% do faturamento, porque diminuiu o número de clientes no local com a aproximação do fluxo de usuários de crack.

Vinícius veio do Socorro e a mulher dele do Campo Limpo, ambos bairros da zona sul. Eles já trabalhavam na região central e, por isso, puderam participar do sorteio que lhes proporcionou um apartamento. Ambos tinham muitas expectativas sobre o futuro na Luz. Hoje, só existe a desilusão.

“Agora, eu me deparo com essa situação, com esse descaso. Não se vê solução, estão empurrando com a barriga. Não sei até que dia vamos aguentar. Não estamos em paz”, diz.

O comerciante dá um exemplo extremo de como a violência e a insegurança estão sempre próximos, citando a morte do porteiro João da Silva Souza, de 54 anos, nessa última semana. “Era meu cliente. Ainda pela manhã [de terça, dia da morte], passou aqui e queria alguns produtos para o cachorro dele. Acabou acontecendo essa tragédia.”

Como a reportagem apurou, diante da insegurança, muitos moradores já pensam em alugar ou mesmo entregar o apartamento onde vivem. Em teoria, os apartamentos não podem ser alugados ou vendidos durante um período de 10 anos, após a aquisição.

Embora afetados diretamente pelo fluxo da Cracolândia, os moradores não foram beneficiados pela isenção do IPTU, que pode chegar a cerca de R$ 1.000 ao ano, dependendo do imóvel.

Síndico

“Já era uma situação delicada. Piorou demais, porque eles [usuários de crack] estão encostados no muro. Teve situação de o pessoal [do fluxo] subir nas marquises”, afirma o síndico Sérgio Fernandes, que não mora no local, mas gerencia tudo o que envolve o complexo.

Os relatos que Fernandes recebe dos moradores são de desolação, de sonhos destruídos pela falta de perspectiva com a aproximação do fluxo de usuários de crack, mais constante ao longo deste ano. “É uma sensação muito ruim, como se você estivesse errado e preso em um lugar onde não deveria”, afirma.

O síndico relata que ele mesmo se sentiu motivado a participar do projeto e até reduziu honorários para fazer parte de algo transformador. “Vim empolgado por essa condição, de fazer parte da evolução do centro de São Paulo. Queria ter isso no currículo, entendi que era importante como projeto social. Mas a gente está encontrando muitas limitações e barreiras”, diz.

Como funciona

No Complexo Mauá, os benefícios passam pelo condomínio de valor reduzido, em torno de R$ 180 mensais. Isso pelo fato de que alguns serviços são absorvidos pela PPP e custeados pelo governo estadual até 2035, como a manutenção dos elevadores e do telhado, pintura de fachada e limpeza de caixas de gordura.

Nos três primeiros anos, uma equipe de assistentes sociais está acompanhando os moradores para facilitar o aprendizado sobre regras e boa convivência no condomínio, porque muitos nunca tinham morado em apartamentos anteriormente.

Os apartamentos são avaliados entre R$ 160 mil, de um dormitório, a cerca de R$ 230 mil, com dois. O valor e o prazo do financiamento variam de acordo com a faixa de renda e idade do interessado. Por exemplo, uma pessoa de 30 anos que foi sorteada e comprou um apartamento de um dormitório em 2021 tem até 30 anos de parcelamento, com prestações em torno de R$ 500 por mês.

Complexo Mauá

  • famílias com renda bruta de 1 a 5 salários-mínimos
  • 42 apartamentos com 1 dormitório (38 m²), 9 com 2 dormitórios adaptados (49,5 m²) e 159 com 2 dormitórios (49 m²)
  • terreno de 2.253,05 m²
  • 22 lojas no térreo
  • valor dos apartamentos variam entre R$ 160 mil (1 dormitório) e 230 mil (2 dormitórios)

O que dizem as autoridades

Procurado pelo Metrópoles, o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) disse, por meio da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação, que o Complexo Mauá foi idealizado para complementar as políticas públicas e esforços do estado e do município para requalificar a área central da capital e aproveitar a infraestrutura existente e subutilizada.

Entre outras coisas, diz que promoveu a revitalização da Praça Júlio Prestes e do 2º Grupamento da unidade do Corpo de Bombeiros, além da construção da creche municipal Nova Luz para 162 crianças.

O governo estadual diz que, desde o início da gestão, a Secretaria de Segurança Pública intensificou o policiamento preventivo e ostensivo na região central, buscando desarticular o tráfico de drogas e aumentar a segurança da população que vive e trabalha na região. “Somente nas últimas 24h, por exemplo, dois grandes traficantes que abasteciam a região da Cracolândia foram presos em operações das polícias Civil e Militar”, afirmou a pasta, na última sexta-feira (18/8).

A SSP também disse que os índices criminais analisados semanalmente indicam uma mudança no cenário de degradação que já vem de vários anos. Os roubos caíram pela 19ª semana consecutiva. Na comparação com a semana entre março e abril, o índice caiu 53%, enquanto o de furtos caiu 31%.

Já a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB), diz que o fluxo “possui dinâmica própria e movimenta-se pelas ruas do Centro, especialmente quando observado seu padrão de acomodação ao longo do tempo”.

A administração citou uma série de iniciativas que realiza na região central, entre elas o Programa Redenção, com profissionais das áreas da saúde e assistência social que atuam tanto no fluxo principal quanto em outros trechos, oferecendo tratamento e acolhimento para os usuários em situação de rua. “Dezenas são encaminhados diariamente para diferentes unidades de tratamento, inclusive em parceria com o governo do estado”, diz, em nota.

A prefeitura diz que estão incluídos no projeto de lei sobre IPTU os imóveis comerciais e residenciais de trechos de seis ruas e que o perímetro a ser beneficiado foi definido com base na contagem diária do fluxo de dependentes químicos nessa área. “A gestão municipal ressalta que a proposta está em análise do Poder Legislativo, onde será discutida com a sociedade de forma democrática e transparente, e poderá sofrer alterações”, conclui.

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