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Sintoma da normalização do passado: por que meu nome (não) é Hitler?

Historiador contextualiza a razão pela qual há, especialmente na década de 70, brasileiros registrados em homenagem ao ditador nazista

Autor Marcos Meinerz

atualizado

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bruno ganz hitler
1 de 1 bruno ganz hitler - Foto: Divulgação

Um registro no site do IBGE informa um dado que pode causar, no mínimo, uma sensação de desconforto: há 188 pessoas chamadas Hitler no Brasil. Além disso, também mostra que, depois da década de 1930, a maior parte dos registros com esse nome no país ocorrem na década de 1970, em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro.

O nome de Hitler está atrelado a um dos maiores genocídios da história da humanidade: o extermínio de, pelo menos, seis milhões de Judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Evento que ficou conhecido como Holocausto ou Shoah (termo em hebraico que significa destruição ou catástrofe).

Mas, por que a existência de pessoas como o nome de Hitler causa espanto ou perplexidade nos dias de hoje e nomes como o de Leopoldo soa inofensivo, um nome como qualquer outro (existem 7740 pessoas chamadas Leopoldo no Brasil atualmente)?

Explico: Leopoldo II era imperador Belga (1865 até sua morte em 1909) durante o período que o país colonizou o país africano do Congo, entre o final do século XIX e primeira metade do século XX. Durante esse período, mais de dez milhões de congoleses foram exterminados, marcando um dos primeiros genocídios do século XX, junto com os povos hererós e namaquas da Namíbia, então colonizada pelos alemães.

Qual a diferença entre os dois nomes? Por que um bestializado e outro é inofensivo? Explico novamente: a Segunda Guerra Mundial é comumente vista no imaginário social como uma luta mítica entre as forças do bem versus as forças do mal.

Para grande parte da cultura ocidental de hoje, Hitler como manifestação ontológica do mal se tornou completamente naturalizado. E isso gira em torno de causa e efeito. A natureza maligna de Hitler figura como a origem do nazismo e dos seus crimes horríveis. Portanto, Hitler seria a própria encarnação do diabo no mundo moderno e, por isso, o uso de seu nome atualmente pode causar espanto, enquanto que outros genocidas da história pouco são lembrados.

Apesar da relação do nome de Hitler com forças das trevas, como podemos explicar o uso dele em pessoas nascidas na década de 1970? Responder tal questão não é tarefa fácil e, certamente, não existe apenas uma explicação. Contudo, podemos indicar alguns fatos para tentar elucidar o contexto da época.

Durante as décadas de 1960 e 1970, observamos um “boom” de produções literárias, cinematográficas e televisivas relacionadas a Hitler e aos nazistas, que pouco tinham a ver com os acontecimentos ocorridos durante o III Reich. São milhares de produções que propagam conspirações, senso comum, sensacionalismo, estereótipos, esoterismo e ocultismo sobre os nazistas, que ganharam o mundo e, sobretudo, o Brasil.

Um exemplo dessas produções é do escritor estadunidense Norman Spinrad que publicou em 1972, a história alternativa intitulada, “The Iron Dream”. No romance, Hitler – que nunca chegou a se tornar o Führer da Alemanha – emigra em 1919 para a cidade de Nova York, nos Estados Unidos, onde viveu como um escritor de ficção científica, ilustrador e editor de fanzine até sua morte em 1953. Sua obra mais conhecida, O Senhor da Suástica, é um enorme sucesso em um mundo onde a União Soviética é a maior potência no cenário político-econômico mundial.

Contudo, a maior parte do livro não se baseia nesse contexto histórico fictício, mas sim no livro escrito por Hitler, no qual o líder forte e persuasivo, Feric Jaggar (alter ego de Hitler), comanda os últimos “humanos normais” do planeta terra (brancos, loiros, altos e olhos azuis) contra um ambiente de mutantes e alienígenas, especialmente os “zinds”, uma mescla entre judeus e soviéticos. No final do livro de Hitler, Jaggar vence a batalha garantindo que o “genótipo perfeito” perpetuará o domínio eterno neste mundo.

No Brasil, nas décadas de 1960 e 1970, tivemos uma inundação de literaturas sobre uma suposta conspiração nazista para erguer um IV Reich¸ tendo como líder Hitler que teria fugido da Europa e da guerra e não se suicidado. Um exemplo de uma vasta produção é do brasileiro que mais escreveu sobre o assunto: Roberto Botacini, jornalista, membro da União Brasileira de Escritores, professor primário, contador, ex-jogador de futebol profissional, proprietário da Editora Combrig e produtor da TV Gazeta de São Paulo.

Botacini era adepto da teoria conspiratória que tinha “apaixonado toda a Europa e o mundo”, ou seja: a fuga e a sobrevivência de Adolf Hitler na América do Sul, onde viveria ao lado de Eva Braun e de alguns fiéis oficiais e soldados remanescentes da Wehrmacht, encarregados de protegê-lo. Em suas seis obras sobre o assunto, o autor tece sua narrativa com base nesses fatos presentes no imaginário da época que comprovariam a sobrevivência de Hitler e a conspiração para formar o IV Reich na América do Sul, inclusive repetidos em quase todos seus livros.

Nas últimas décadas, numerosas controvérsias surgiram em torno da crescente exploração de símbolos nazistas pela cultura de massa, entre outros: um pub em Seoul, Coreia do Sul, ganhou manchetes no mundo ao caracterizar seu interior com temática nazista, repleta de suásticas e garçonetes com uniforme de guerra.

 

Além disso, um romancista alemão levantou polêmica por publicar uma novela explorando o assunto da pornografia nazista; recentes filmes norte-americanos causaram objeções por focar no lado “humano” do jovem Hitler; uma companhia alemã começou a vender vasos sanitários feitos no formato da cabeça de Hitler; uma ampla variedade de revistas em quadrinho e jogos de vídeo games que usam Hitler e outros nazistas como personagens centrais; uma reprodução em tamanho real de Adolf Hitler com a qual visitantes de um museu faziam selfies foi tirada de exposição na Indonésia.

Cliente com símbolo nazista em bar provocou indignação em cidade de Minas Gerais, em 2019

De acordo com o historiador estadunidense Gavriel Rosenfeld, analisar as produções de entretenimento sobre o III Reich pode nos render uma percepção única de como a era nazista tem sido memorizada/lembrada na sociedade ocidental do pós-guerra, ajudando-nos a entender melhor o papel da cultura de massa (local dessas narrativas) em moldar a consciência histórica sobre o nazismo.

Para o autor, o fato dessas produções possuírem venda garantida (e como toda a mercadoria que tenham o nazismo ou a suástica na capa) reflete a contínua normalização e relativização do passado nazista. Esse passado é usado fora de contexto e sem uma devida e necessária problematização. Conforme Rosenfeld, não importa onde apareçam, sinais dessa normalização abundam na cultura contemporânea.

A era nazista está sendo transformada em uma miscelânea de símbolos com o propósito de fascinar, deleitar, angariar atenção, e – sem surpresas – vender

Marcos Meinerz

Isso proporciona uma significativa reverberação na consciência histórica, pois a exploração comercial dos símbolos nazistas os remove do seu contexto histórico original transformando-os em significados vazios. Dessa forma, a estetização do passado nazista na cultura de massa obscurece sua excepcionalidade e contribui para a normalização desse fato.

Portanto, nessa perspectiva, a utilização do nome de Hitler a partir da década de 1970, seria mais um sintoma dessa normalização do passado.

*Marcos Meinerz é professor e doutor em história, com pesquisas relacionadas ao nazismo

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